IGOR GIELOW
MOSCOU, RÚSSIA (FOLHAPRESS) – Após quatro meses de crise com o Ocidente, a Rússia decidiu atacar a Ucrânia nesta quinta-feira (24), naquilo que Kiev e a Otan (aliança militar ocidental) chamaram de invasão total. É a mais grave crise militar na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, e a maior operação do gênero desde que os Estados Unidos invadiram o Iraque, em 2003.
O presidente Vladimir Putin foi à TV para dizer que faria uma “operação militar especial” no Donbass, a área de maioria russa étnica no leste do vizinho. Seu comando militar, contudo, confirmou que “armas de precisão estão degradando a infraestrutura militar, bases aéreas e aviação das Forças Armadas ucranianas”.
Além disso, o comando militar das repúblicas rebeldes afirma que está avançando com suporte russo rumo às fronteiras que consideram suas, violando assim território ucraniano que estava sob Kiev. O nome disso é guerra, invasão ainda que não total. No fim da tarde, o órgão disse que 70 alvos militares haviam sido atingidos, além de 11 pistas de pouso, 1 base naval e 3 centros de controle.
Não há estimativa de mortos, mas estão na casa das dezenas ou centenas. Kiev disse ter matado ao menos 50 soldados russos, o que Moscou nega, e derrubado cinco aviões e um helicóptero o Kremlin admite apenas um caça perdido, num erro de pilotagem. Já um avião de transporte ucraniano caiu perto da capital.
TVs mostraram tanques que estariam invadindo o norte do país a partir da Belarus, sem confirmação independente. Imagens ao vivo mostraram o bombardeamento de Kharkiv com mísseis disparados de Belgorod, na Rússia.
Por outro lado, Moscou falou inicialmente que forças ucranianas “não estão resistindo a unidades russas”, sem dizer onde.
A ação começou por volta das 4h30 (horário de Kiev, 23h30 de quarta em Brasília). Às 5h45 (de Moscou, 23h45 de Brasília), Putin foi à TV e anunciou uma “operação militar especial” para “proteger a população do Donbass”, região do vizinho na qual ele reconheceu áreas rebeldes pró-Rússia na segunda (21).
Ele disse que quer trazer à justiça quem cometeu o que chamou de “genocídio” e “crimes” contra russos nas áreas, além de “desmilitarizar e desnazificar” a Ucrânia.
Há sinais claros de um ataque amplo, mas não se sabe se é uma invasão total nos termos colocados por Kiev e pelo Ocidente. Putin disse estar cumprindo o que havia prometido: enviar tropas para apoiar as autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk, e negou que irá ocupar território.
O governo em Kiev pensa diferente. “A invasão da Ucrânia começou”, afirmou por sua vez o ministro do Interior ucraniano, Denis Monastirski, citando ataques com artilharia e mísseis. “É uma invasão total”, disse seu colega chanceler, Dmitro Kuleba, no Twitter. O país decretou lei marcial e fechou seu espaço aéreo.
O presidente Volodimir Zelenski divulgou vídeo afirmando que os russos atacaram pontos de fronteira e infraestrutura militar do país. “Fiquem calmos”, disse, afirmando que o presidente Joe Biden prometeu apoio dos EUA. Mais tarde, ele fez um pronunciamento dizendo que as forças ucranianas estavam resistindo, pedindo doações de sangue para soldados e afirmando que os próximos passos da guerra dependiam de Putin um truísmo, dada a desproporção de poderio militar de lado a lado.
“Por tudo o que estamos vendo até aqui, e é preciso mais clareza, parece mesmo ser uma invasão”, disse por telefone um dos principais analistas militares russos, Ruslan Pukhov, diretor do Centro de Análise de Estratégias e Tecnologias, de Moscou.
A Otan, por sua vez, chamou o ataque de “invasão por diversas frentes” e um “ato brutal de guerra”. Segundo seu secretário-geral, Jens Stoltenberg, é uma “invasão planejada há muito tempo”. Ele voltou a dizer que a aliança militar de 30 membros manterá alta vigilância no Leste Europeu mas, também previsivelmente, não irá mexer uma palha militar para defender a Ucrânia.
Houve explosões em torno de Kiev e de Kharkiv, importante centro no leste do país. Sirenes antiaéreas começaram a soar na capital às 7h06 locais (2h06 em Brasília), mas até agora não houve relatos de bombardeio diretos da cidade. Moradores da capital se esconderam no sistema de metrô da capital, herança soviética profunda para servir de bunker.
O comando militar russo disse que não está mirando civis.
O governo em Kiev afirma que blindados russos chegaram perto da capital, e um aeroporto ao norte cidade foi tomado por forças aerotransportadas por helicópteros Mi-8 com apoio de modelos de ataque Ka-52, todos vindos de Belarus.
Segundo disse por telefone um morador de Rostov-do-Don à Folha, Mariupol ficou sob fogo também. A cidade portuária no mar Negro fica a 180 km da capital da região de Rostov e é um ponto importante perto da chamada linha de contato, a fronteira de 430 km entre os rebeldes pró-Rússia e as forças de Kiev. Segundo Kiev, morreram ao menos duas pessoas lá.
É incerto o que acontece lá: se os russos estão fazendo o que Putin anunciou, “desmilitarizar” a região em torno das ditas repúblicas rebeldes, ou se é o prenúncio de uma ocupação generalizada. Esta é a questão central que preocupa planejadores ocidentais desde a segunda.
O cenário desenhado até aqui é o de incapacitação das Forças Armadas ucranianas, em um grau semelhante ao imposto à Geórgia pelo mesmo motivo de aproximação com o Ocidente em 2008, restando saber até onde o Kremlin pretende ir. Os sinais não são auspiciosos para Kiev.
“As repúblicas do Donbass nos procuraram e pediram ajuda. O objetivo [da “operação militar especial] é proteger o povo do abuso e do genocídio a que ele vem sido submetido pelo regime de Kiev. Para isso, vamos buscar desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia, e levar à justiça aqueles que cometeram numerosos crimes sangrentos contra um povo pacífico, incluindo cidadãos russos”, disse Putin.
É uma declaração que promete caçar membros do governo ucraniano. O Donbass é talvez 80% russófono e tem cerca de 4 milhões de pessoas nas áreas rebeldes. Desses, 800 mil têm passaporte de Moscou.
Nessa fala, o presidente russo delineou a justificativa da ação para seu público interno. A “desnazificação” a que ele se refere ressoa fortemente na Rússia, já que de fato há elementos nas Forças Armadas da Ucrânia com associações neonazistas como o famoso Batalhão Azov, que usa insígnia da SS nazista. Os alemães lutaram contra os soviéticos pelo controle da Ucrânia na Segunda Guerra Mundial.
O presidente Zelenski, contudo, é judeu e sempre que pode lembrar disso ao comentar as acusações russas. O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, afirmou que só Putin determinará o limite da operação. Ele só reafirmou que não há intenção de ocupar a Ucrânia. Sugeriu a derrubada do governo: “Idealmente, você liberta a Ucrânia e se livra dos nazistas. O futuro pertence ao povo ucraniano”.
O presidente americano, Joe Biden, que desde janeiro fala em “invasão iminente” dos russos, afirmou que o país “será responsabilizado” pelos ataques. Em pronunciamento, anunciou um pacote novo de sanções contra os russos, assim como a União Europeia, agora focadas em transações do governo em moedas estrangeiras e bloqueios a ativos de quatro grandes bancos.
“Vamos limitar a capacidade da Rússia de fazer negócios envolvendo dólares, euros, libras e ienes”, disse, sem dar detalhes de como isso se dará. “Eu não tenho planos de falar com Putin […] Ele é o agressor. Putin escolheu essa guerra e agora ele e seu país suportarão as consequências.”
A Ucrânia não é parte da Otan, então seus 30 membros não vão defendê-la, como ocorreria se fosse com qualquer um dos integrantes do clube. “Temos cem jatos em alerta máximo. Não pode haver erros de cálculo: o ataque a um [dos membros] é a todos”, disse Stoltenberg. O desejo do governo pró-Ocidental que tomou o poder em 2014 era exatamente entrar na aliança, assim como na União Europeia.
Visando evitar a chegada do arcabouço ocidental à sua mais importante fronteira, assim como a da aliada ditadura da Belarus, Putin interveio na crise oito anos atrás anexando a Crimeia e fomentando a guerra civil que agora pretende resolver “manu militari” no leste do país.
Putin pediu para que a Ucrânia baixe as armas no leste e fez uma advertência sombria às potências estrangeiras. “Para qualquer um que considerar interferir de fora: se você o fizer, irá enfrentar consequências maiores do que qualquer uma que enfrentou na história. Todas as decisões relevantes foram tomadas, eu espero que você me ouça”, afirmou.
São palavras de retórica incendiária, mas sempre é bom lembrar que no sábado passado (19), o autor dela comandou um grande exercício militar demonstrando capacidades de ataque nuclear por solo, ar e mar. Novamente: a Terceira Guerra Mundial não parece provável porque o próprio Biden já disse que na Otan não interviria militarmente, mas os riscos estão todos colocados.
A ação culmina quatro meses de tensão. Putin mobilizou cerca de 150 mil a 190 mil soldados em torno do país, segundo o Ocidente, e emitiu um ultimato para que a Otan pare de se expandir e que nunca absorva a Ucrânia, entre outros pontos. O russo reclama desde então que o Ocidente, que rejeitou as demandas, não ouviu ele falar sobre “linhas vermelhas”.
Até aqui, as tropas mobilizadas davam credibilidade à ameaça russa. Nesta quinta, foram além disso. A Rússia fechou 12 aeroportos no sul do país e suspendeu operações com ativos de curto prazo.
O anúncio foi feito exatamente ao mesmo tempo que uma reunião emergencial do Conselho de Segurança da ONU debatia a crise.