ROSTOV-DO-DON, RÚSSIA (FOLHAPRESS) – Vladimir Putin deu um passo decisivo na rota de conflito com a Ucrânia e o Ocidente. Segundo o Kremlin informou nesta segunda (21), o presidente da Rússia informou aos líderes Emmanuel Macron (França) e Olaf Scholz (Alemanha) que vai reconhecer as áreas autônomas resultantes da guerra civil no leste do vizinho.
Com isso, os arranjos que mal sustentavam o equilíbrio na região, os Acordos de Minsk (2014-15), morrem. A Rússia passa a ser um ator ativo no conflito, não mais um presumido juiz.
“O presidente disse que planeja assinar o relevante decreto num futuro próximo”, disse o comunicado do Kremlin, ressaltando que Macron e Scholz expressaram desapontamento com a decisão e indicaram a necessidade de se manterem contatos diplomáticos.
A assinatura seria oficializada em um pronunciamento de Putin na TV russa ainda na noite desta segunda –tarde no Brasil.
Não ficou claro, contudo, se Putin reconhece as atuais fronteiras das áreas separatistas ou se aceita a demanda deles, incluindo porções das antigas províncias de Lugansk e Donetsk. Se o fizer, o caminho de uma guerra no leste da Ucrânia pode estar garantido.
Ele tomou a decisão –algo que estava na mesa desde que o Parlamento russo fez tal pedido na semana passada, e nada do tipo ocorre sem combinação com o Kremlin– após uma coreografada reunião do seu Conselho de Segurança.
O movimento vem no dia em que a Rússia disse ter entrado em confronto direto com os ucranianos, anunciando ter destruído dois blindados do vizinho e matando cinco militares, que teriam cruzado sua fronteira. Kiev nega que tal incidente ocorreu.
O encontro foi televisionado depois de ocorrer, e os principais ministros do governo russo sugeriram de forma coordenada a medida a Putin –que comandou a reunião de uma mesa distante de seus subordinados, refletindo novamente seu temor em relação Covid-19, no Grande Palácio do Kremlin.
Também nesta segunda, os líderes das duas repúblicas rebeldes haviam pedido a Putin que as reconheça e lhes forneça ajuda militar e financeira. A fala mais elaborada foi de Dmitri Medvedev, o número 2 do conselho. “Essa situação terá de ser enfrentada. Há cerca de 800 mil cidadãos russos naquelas regiões, não podemos ignorar isso”, disse.
Ele se referia às pessoas que receberam passaporte de Moscou nos últimos anos. Há ao todo cerca de 4 milhões de pessoas morando nas áreas separatistas. Medvedev citou a situação na Geórgia em 2008, quando ele era presidente e tinha Putin como mentor e premiê, que acabou em guerra para garantir direitos e reconhecimento a russos étnicos naquele país.
Isso dá uma sinalização acerca de um caminho para a temida ação militar de Putin, que desde novembro concentra forças em torno da Ucrânia em exercícios militares que somam de 150 mil a 190 mil soldados, segundo os Estados Unidos.
Putin demonstrou irritação e sinalizou, ou simulou, uma intenção belicista. “Eu fiz tudo o que pude para resolver a crise com a Ucrânia de forma pacífica”, disse. Ele e ministros como o chanceler Serguei Lavrov revisitaram os temas do ultimato lançado pela Rússia aos EUA, que foi rejeitado pela Casa Branca e pela Otan (aliança militar ocidental).
Em resumo, Putin quer o fim da expansão da Otan e, por extensão, da União Europeia. O símbolo disso seria o compromisso de que a Ucrânia nunca seria membro da aliança militar, trazendo forças ofensivas ocidentais para as fronteiras russas –a presença no outro ponto de contato, os Estados Bálticos, é bastante modesta justamente para não provocar demais Moscou.
A desconfiança estava no ar. Lavrov disse que “falamos com os EUA porque a Otan fala o que os EUA dizem”.
O Conselho de Segurança reportou tanto as ações dos últimos dias quanto o suposto incidente desta segunda. “Vamos fazer uma investigação. Houve 40 violações de cessar-fogo só nesta noite [de segunda]. Os ucranianos estão usando armas pesadas contra civis. Há 325 tanques, 880 canhões, tropas”, afirmou o ministro da Defesa russo, Serguei Choigu.
O roteiro vinha sendo cantado por autoridades ocidentais desde o começo do ano. A gravidade do incidente desta segunda é que se trata da primeira vez que os russos dizem ter enfrentado o que chamam de “provocação” de Kiev.
Desde quinta passada (17), quem fazia tal acusação eram os separatistas das autoproclamadas repúblicas populares de Donetsk e Lugansk, as áreas autônomas resultantes da guerra civil fomentada pelo Kremlin em 2014.
Segundo as agências de notícias russas, a ação ocorreu quando blindados de transporte de pessoal cruzaram a fronteira entre a dita república de Lugansk e a região russa de Rostov, em Mitianskaia. Além dos mortos, há um capturado, segundo o Kremlin. Mais cedo, um posto policial havia sido atingido por um projétil, segundo os russos.
Não há provas ainda do que teria ocorrido no episódio mais grave, mas a resposta do ministro da Defesa da Ucrânia, Oleksii Reznikvo, foi imediata: ele negou ter havido qualquer escaramuça, quanto mais com mortos. E negou a acusação russa de que os blindados levavam sabotadores que agiam em Lugansk.
Verdade, mentira ou algo no meio do caminho, o que interessa é que o pretexto para Putin está dado. Analistas moscovitas apostam que ele irá usar isso para pressionar ainda mais o Ocidente e Kiev a aceitar negociar ou ainda forçar que os ucranianos se acertem com separatistas sob as regras dos Acordos de Minsk.
Na leitura do Kremlin, isso resolveria o problema pois a Ucrânia seria federalizada, e os rebeldes teriam poder de veto a decisões como abraçar o arcabouço institucional do Ocidente.
Mas hoje isso parece bastante distante, embora o governo do presidente Volodimir Zelenski esteja assustado com a possibilidade de ser deixado sozinho para enfrentar Putin. O reconhecimento das repúblicas abre o caminho para uma militarização da região com forças russas, sem que tecnicamente seja uma anexação como a ocorrida na Crimeia.
Putin disse isso claramente. “Estamos discutindo a independência das regiões”, afirmou, ao ser instado a unificá-las à Federação Russa. Há uma consideração prática: estima-se que uma anexação não sairia por menos de US$ 25 bilhões, algo que Moscou não pode se dar ao luxo de gastar.
O conflito entre Vladimir Putin e o Ocidente ganha então um novo elemento, que pressiona Zelenski –parece improvável que ele tentará impedir os russos militarmente.
EUA e países europeus prometem diversas sanções contra Moscou, mas o presidente Joe Biden falou diversas vezes que não enviará tropas para defender Kiev. Essa é a senha para Putin: ele não precisa necessariamente atirar, mas demonstrar que pode fazer isso.
Pouco antes do anúncio oficial do Kremlin de reconhecimento dos rebeldes, já circulavam notas de desaprovação no Ocidente. O alemão Olaf Scholz chamou o ato de “ruptura unilateral” dos Acordos de Minsk, secundado por um porta-voz da ONU e pelo chefe da diplomacia da UE, Josep Borrell, que voltou a colocar na mesa a carta de sanções econômicas.
Tudo isso ocorre após um domingo (20) em que o presidente Emmanuel Macron, da França, parecia ter conseguido arranjar uma reunião de cúpula entre Putin e Biden. Mais cedo, nesta segunda, o Kremlin já havia dito que isso seria prematuro.
Na reunião, Lavrov sugeriu a Putin que deveria ir em frente com a reunião prevista para quinta (24) com o secretário de Estado americano, Antony Blinken, na Suíça ou na Finlândia. Do lado mais falcão do encontro, Choigu alertou para a fala de Zelenski na Conferência de Segurança de Munique, no fim de semana, na qual o ucraniano sugeriu que seu país poderia buscar ter armas nucleares.
A Ucrânia está cercada por três lados: a Crimeia anexada por Putin em 2014, uma grande faixa no seu leste e ao norte, pelos cerca de 30 mil militares russos que estão na Belarus. Além disso, há uma pequena presença militar russa no encrave separatista pró-Kremlin de Transdnístria, em Moldova, a oeste de Kiev.