Buenos Aires (Argentina) – Alan Pauls ri da ideia de que seu novo romance, “A Metade Fantasma”, possa ser definido como uma “batalha entre dois séculos” – no caso o 20 e o 21. Mas concorda que o encontro amoroso que se constrói na narrativa seja uma abordagem cômica e aguda, com certo ar desolador, sobre a entrada da humanidade nestes novos tempos.
“Estão os dois séculos aí e posso dizer que os conheço na medida em que os vivi. Mas não pensei no livro como um enfrentamento entre ambos, e sim como uma exploração dessa coexistência, esse momento em que um século está tomando o lugar do outro, em que um vai saindo de cena e outro, entrando”, diz Pauls, em entrevista por videoconferência de Berlim.
Novo livro de Alan Pauls pode ser definido como a batalha entre dois séculos
Aos 62 anos, ele se mudou para lá há três anos com mulher, a atriz e diretora teatral Lola Arias, e o filho mais novo, por causa de uma bolsa para escritores. “Acabei o livro e começou a pandemia, portanto há muito o que ainda gostaríamos de fazer aqui”, diz ele.
A trama nos traz um casal improvável à primeira vista. É formado por Savoy, um homem com os pés bem fincados no século 20 que tem curiosas manias. Mais do que isso – elas parecem ser o motor de suas ações.
Ele vive em apartamentos alugados, que troca a cada tanto, e passa os dias visitando apartamentos e casas que estão à venda ou disponíveis para locação. O objetivo imediato não é conseguir uma propriedade, mas se meter, ainda que fugazmente, na vida das pessoas que habitam esses espaços. Enquanto as observa, faz perguntas sobre detalhes e imperfeições do imóvel, a razão de ser de cada decisão de reforma.
“Sua intenção parece ser mais do que observar, e sim roçar essas vidas, saber como uma família convive, suas obsessões, o status de suas relações, quanta decadência podem suportar juntos, ver como se deteriora um espaço”, conta Pauls.
Da mesma forma que faz com os apartamentos, o protagonista tem a mesma necessidade de investigar quem está por trás de anúncios de venda online, hoje tão impessoais, transações em que não se vê a cara de quem vende. Pois Savoy compra pela internet, como tantos, mas faz questão de ir buscar os objetos na casa dos vendedores, “pela simples curiosidade de saber a cara de quem vende um hamster empalhado ou a primeira edição de um livro”.
Tão particular personagem se encontra justamente com alguém que parece estar no século seguinte. É Carla, uma nômade digital, que viaja pelo mundo para cuidar de casas, com quem ele se relaciona por um longo tempo por Skype, tentando justamente investigar algo mais de sua vida pelas poucas dicas que a transmissão da chamada permite. Quando o romance real finalmente engata, ele se dissolve em menos de um mês.
ANSIEDADE
Um dos temas que Pauls investiga na obra é o da ansiedade, que classifica como “a endemia do século 21”, ligada à nossa relação com a tecnologia contemporânea.
“A conectividade nos produz ilusões de contemporaneidade, de sincronia e pertencimento a algo que está acontecendo, uma ilusão de imediatismo.” E também, por causa das redes sociais, “passamos para uma nova democracia de avaliações, que é atroz, que é um julgamento social a partir dos ‘likes’ que nos dão por nossas preferências e atitudes”, afirma.
INSPIRAÇÃO
Pauls diz que não gosta do rótulo de escritor romântico, mas que o tema do amor, das relações, são para ele uma grande fonte de interesse e de inspiração. Foi assim com seu primeiro livro “El Pudor del Pornógrafo”, de 1984. Nele, um homem que tem como ofício incentivar a paixão e a luxúria dos que o buscam acaba de apaixonando por alguém algo distante dele, a bela Úrsula. Ele a princípio a vê de longe, num parque, e daí passam a uma correspondência de cartas de amor. “Essa era a tecnologia de então”, diz Pauls, rindo.
“O Passado” foi a obra que projetou Alan Pauls como escritor
Neste ano, se completam duas décadas do lançamento da obra que projetou Pauls como escritor, “O Passado”, vencedor do prêmio Herralde. No romance, o casal formado por Rímini e Sofía tenta entender o que ocorreu com o amor que os manteve juntos por 13 anos. O livro virou filme, uma coprodução entre Argentina e Brasil dirigida por Hector Babenco com Gael García Bernal, Moro Anghileri, Analía Couceyro e outros no elenco.
“São livros muito diferentes, mas tratam de diversos questionamentos sobre o amor, o amor nesses tempos virtuais, o amor platônico ou correspondido, o amor que não sabemos como e se acaba e o que acaba rápido demais. Seguramente é o material mais atrativo para se escrever a respeito”, diz Pauls.
É certo que em sua obra cabem projetos diferentes, como a trilogia das “histórias”, composta por “História do Choro”, de 2007, “História do Cabelo”, de 2010, e “História do Dinheiro”, de 2013. São investigações pessoais, algo ensaísticas, sobre os tantos temas que atravessam esses três elementos.
Tendo os também argentinos Ricardo Piglia como uma espécie de padrinho literário e Manuel Puig como uma constante inspiração, Pauls também se dedica a dar aulas, escrever roteiros e ensaios. Passou um longo tempo da carreira trabalhando como jornalista, na seção de cultura do Página12, tradicional periódico progressista argentino.
Mesmo tendo escrito sobre o uso da tecnologia em nossos tempos, Pauls se mantém alheio a elas. “Não entro nisso, não é para mim, penso que é uma lógica que me tiraria do meu caminho.”
Talvez ele não saiba, mas isso já aconteceu, quando decidiu abrir, por curiosidade, uma conta de Instagram – para a qual, aparentemente, não dá muita importância. “Solto cápsulas ali, mas não me vejo fazendo um projeto”. Tal qual seu protagonista, no entanto, admite que usa a conta também para observar pessoas e seguir comportamentos.
O escritor Alan Pauls diz que é atroz fazer ou receber um julgamento social através dos “likes” | Foto: iStock
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