Chamamentos ou os dez cantos de amor de Hilda Hilst

“Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão” (1974) é um dos livros mais bonitos de Hilda Hilst. Um diálogo entre a escrita livre e a tradição lírica, na forma “de canção de amigo” e gênero clássico. Nele, a poeta canta a ausência do amigo sempre esquivo, ocupado com o mundo dos negócios. Então ela canta e, encantada com seu próprio canto, cria um elogio ao amor. 

Conta-se que Carlos Drummond de Andrade considerava este o melhor livro de Hilda e comentou com ela: “você não dormiu com este homem.” Talvez o poeta considerasse que a força dos versos devia-se a essa lacuna, a essa ausência transformada num êxtase de palavras. Acontece. 

Na orelha do livro, porém, fica claro que não há nenhum happy ending: “Ao fim o amado esquivo se dissolve ou se confunde com o homem morno, com o predador político, inimigo caricato da vida e da arte.” O que não deixa de ser um ato de violência que, assim mesmo, reacende o espectro da paixão. Na aflição da espera amorosa, ao contrário de Penélope, a poeta moderna remete à desolação dos tempos, não à esperança. Mas nem por isso, os versos deixam de ser lindos. E a dedicatória que ela faz é um registro que aviva a memória para sempre, ainda que alguns amores sejam quase míticos. Hilda dedica o livro a “AM.N. porque ele existe.”  

Não é apenas um vago, modulado sentimento 

O que me faz cantar enormemente 

A memória de nós. É mais. É como um sopro 

De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso 

É como se a despedida se fizesse o gozo 

De saber 

Que há no teu todo e no meu, um espaço 

Oloroso, onde não vive o adeus 

Não é apenas vaidade de querer 

Que aos cinqüenta 

Tua alma e teu corpo se enterneçam 

Da graça, da justeza do poema. É mais. 

E porisso perdoa todo este amor de mim. 

E me perdoa de ti a indiferença. 

*** 

O poema, que faz parte do livro “Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão”, integra uma série chamada “Dez Chamamentos ao Amigo”, escritos certamente para a mesma pessoa. Na série é difícil escolher um poema, todos são lindos, mas destaco também o primeiro. 

Se te pareço noturna e imperfeita 

Olha-me de novo.

Porque esta noite 

Olhei-me a mim, como se tu me olhasses. 

E era como se a água 

Desejasse 

Escapar de sua casa que é o rio 

E deslizando apenas, nem tocar a margem 

Te olhei. E há um tempo

Entendo que sou terra.

Há tanto tempo

Espero

Que o teu corpo de água mais fraterno

Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

*

Olha-me de novo. Com menos altivez.

E mais atento.

A opinião da colunista não reflete ,necessariamente, a da Folha de Londrina.

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