SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Numa casa antiga na alameda Glete, o vaivém das mãos de tecelãs nos teares produzia, trama por trama, grandes tapetes coloridos. Nas décadas de 1960 e 1970, sob o olhar dos artistas Norberto Nicola e Jacques Douchez, as peças saíam do sobrado no centro de São Paulo para as salas de estar da elite paulistana e para exposições em museus, onde eram penduradas no meio do espaço expositivo, longe das paredes, ganhando assim o estatuto de obra de arte.
Muitas décadas mais tarde, tecelãs na Índia confeccionam manualmente grandes tapetes com estampas de animais venenosos em preto e branco, como cobras e insetos, e bichos típicos do Brasil, a exemplo de tucanos e onças pintadas. Do país asiático de tradição tapeceira, os têxteis feitos por encomenda da artista Regina Silveira vão agora ser mostrados nas paredes de uma galeria paulistana, em mais uma exposição do que parece ser a aposta do momento no circuito -a arte têxtil.
Depois de um longo período consumindo obras de arte pelo celular, por causa da pandemia, e da explosão da arte intangível dos NFTs, que também só existem numa tela, o mercado, as instituições culturais e o público se voltam com afinco para grandes peças confeccionadas com metros de lã e fios, boa parte das quais coloridíssima e algo kitsch. Em paralelo, jovens artistas expandem o conceito de tapeçaria, ao bordarem termos pornográficos e até mesmo dispensarem a tecelagem.
São provas desse retorno a exposição das tapeçarias tridimensionais de Douchez e Nicola em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM, a inauguração nesta semana da mostra de Silveira e da artista têxtil chinesa Miranda Fengyuan Zhang em galerias da cidade, e também o resgate dos chamados “quadros de lã” de Madalena dos Santos Reinbolt numa individual prevista para o final do ano no Museu de Arte de São Paulo, o Masp. Isso tudo além das esculturas têxteis de Eva Soban, que podem ser vistas até março no Museu de Arte Sacra.
O resgate da tapeçaria moderna começou há pouco mais de uma década, diz a pesquisadora e galerista Graça Bueno, que trabalha com os herdeiros de Douchez, Nicola e do conhecido tapeceiro baiano Genaro de Carvalho. “A gente voltou a enaltecer e apreciar a arte do fazer, do feito à mão, do que seja bordado. Quando a pintura se transforma em tapeçaria, dá vontade de pôr a mão. A tapeçaria cumpre as funções práticas que o Le Corbusier falava -decora, melhora o ruído da casa e tem uma função estética”, afirma, acrescentando que o pai da arquitetura moderna chamava os tapetes de “murais nômades”.
Denise Mattar, que organiza a exposição de Eva Soban -artista referência quando o assunto são tramas-, diz acreditar que é feita agora uma grande revisão de conceitos que se cristalizaram, como o de que “a única arte brasileira boa é o concretismo e o neoconcretismo”. Ela celebra o resgate da tapeçaria como objeto artístico, posição que o suporte havia perdido para a pintura e para a arte conceitual no final do século 20, quando voltou a ser estigmatizado como arte decorativa.
Mattar lembra que a Bienal de São Paulo usou por muitos anos o termo arte decorativa em suas mostras, seção na qual ficavam expostas as tapeçarias, mas que depois de um certo tempo a expressão desapareceu -assim como esse tipo de trabalho. Douchez e Nicola tiveram suas obras expostas em algumas edições da Bienal de São Paulo. Foi numa edição do evento, aliás, que conheceram o trabalho radical de Magdalena Abakanowicz, a grande inspiração de ambos.
Usando lãs de diferentes espessuras e texturas e assumindo nós e fiapos, a polonesa mostrou à dupla o caminho para os tapetes tridimensionais que eles passariam a realizar, anunciados num manifesto em que também falavam que estavam abandonando a tapeçaria plana tradicional. “Tentamos dar à tapeçaria uma nova dimensão criativa. A fibra e o tecido possuem um volume com qualidades próprias de tensão, elasticidade, comportamento, enfim, um lugar no espaço”, escreveram, em 1969.
A retomada não é só no Brasil. Logo que terminou sua grande reforma, no final de 2019, o MoMA, em Nova York, fez uma exposição cobrindo 80 anos de arte têxtil, “um suporte que desafia categorizações”, segundo o museu. A última edição da Art Basel Miami Beach, uma das principais feiras de arte do mundo, trouxe como tendência -junto aos NFTs- tapeçarias gigantescas, obras produzidas com pele animal fake e tecidos felpudos, estimulando os prazeres táteis e visuais numa explosão de cores.
De uma forma ou de outra, o que as mostras trazem é mesmo bastante colorido, como se o têxtil não desse tanto espaço para a sobriedade. É uma estética distante do tapete de paisagem em tons ocre da casa da vovó. Madalena do Santos Reinbolt não economizava nos fios vermelho e cor-de-rosa em seus quadros tecidos com motivos de ambientes rurais e vida no campo. O tapeceiro Kennedy Bahia bordou flores, pássaros e baianas em tons neon berrantes, numa visão algo lúdica da Salvador dos anos 1970 e que tem vendido mais nos últimos anos, segundo sua filha, Cintia Kennedy.
Os jovens artistas seguem pelo mesmo caminho, mas inovam ao levar o suporte ao limite. Randolpho Lamonier borda sobre tapete um coração que lembra um ânus com dizeres eróticos e também costura e dispõe objetos e fotografias de Bolsonaro sobre um tecido de quase 15 metros quadrados em que se lê “genocida”. Julia Angulo faz trabalhos “com a lógica e a estrutura da tapeçaria, mas não necessariamente a parte da tecelagem”, ela diz.
Na obra “Tapete Estrutura”, a artista criou formas geométricas com fita adesiva azul em tecido de algodão. Em “Tapete Remédios”, costurou bulas, cartelas de medicamentos e miçangas sobre papel.
Historicamente, a tapeçaria no Brasil remonta ao modernismo dos anos 1920, quando Regina Gomide Graz pesquisou tecelagens indígenas do Amazonas para então confeccionar suas peças -parte delas foi exposta no MAM no ano passado. Décadas mais tarde, ela repassaria seus teares para Douchez e Nicola abrirem seu ateliê. Mas a retomada de hoje é menos calcada na história romântica da tradição e mais na política, segundo Ana Paula Simioni, professora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.
“A reavaliação da arte contemporânea passa pelo questionamento do lugar-comum artista versus artesão, dicotomia essa que, no Brasil, tem sexo, gênero, cor e classe social. Os artistas têm questionado a noção geral de que o artista é um homem branco que pinta sozinho uma grande tela em seu ateliê, imagem que se opõe à mulher, diletante, amadora, que faz prendas do lar. Creio que os têxteis, os tapetes, os bordados, entram como meios de contestação importantes por sua carga simbólica no Brasil.”