Elas chegaram como um bando de andorinhas no país das mulheres silenciadas. Dentro e fora do campo, têm brilhado mais que os estádios suntuosos no país dos sheiks. Africanas, asiáticas, americanas, europeias estão na torcida por seus países e foram responsáveis por momentos emocionantes que demonstram que elas estão lá pelo futebol mas, principalmente, por seu direito de vibrar também por um esporte predominantemente masculino.
Brasileiras na Copa e celebram a tribo com a tecnologia | Foto: Manan Vatsyayana/AFP
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No século em que as mulheres não querem mais se calar, o contraste entre as burcas escuras e os rostos pintados é o maior desafio e conquista nas arquibancadas, tomadas por homens durante décadas, que abrem cada vez mais espaços para que elas retoquem não só o batom, mas a própria história, entre o primeiro e o segundo tempo.
E o tempo é o senhor da justiça. Agora, nem o patriarcado nem a religião podem mais ocultar que o planeta é também das mulheres. Essa Copa consolida o desejo de explodir num gol que atravessa o campo e alcança a cultura.
A explosão em cores de uma torcedora de Gana: a mãe África sempre emociona | Foto: Khaled Desouki/ AFP
Muito simbólico ver a alegria dos rostos pintados e sem véus no país das burcas. Uma explosão de alegria na qual as africanas são as mais coloridas, com seus rostos, turbantes e bandeiras que comemoram o balanço das redes e das arquibancadas. Foi emocionante ver as mulheres coloridas do Senegal e de Gana, emocionante também ver as mulheres árabes enviando mensagens nos rostos em que uma lágrima negra ressalta os olhos que transmitem a vontade de serem vistas, sem esconder emoções nem sabedoria. Trata-se de um grito de emancipação momentânea que ainda precisa vencer a discriminação nos países em que elas são privadas até dos estudos.
Stéphanie Frappart, primeira juíza de um Mundial onde só os homens apitavam | Foto: Karim Jaafar/ AFP
Tambores asiáticos encontram tambores africanos no estádio que anuncia os novos tempos na marra. O riso e o choro saem enfim do sufoco. Fora e dentro do campo, as mulheres são campeãs nesta Copa. Pela primeira vez, uma mulher apitou uma partida: a francesa Stéphanie Frappart foi escalada para liderar, no jogo entre Alemanha e Costa Rica, o primeiro trio de arbitragem feminino num Mundial masculino, com a brasileira Neuza Back como uma das assistentes.
Do país de Simone de Beauvoir ao Catar, foi uma trajetória que os homens que vivem apitando em tudo nem imaginam.
Uma mulher do Marrocos põe um toque contemporâneo nas roupas tradicionais | Foto: Fadel Senna/ AFP
Tem ainda a jornalista esportiva alemã Claudia Leman que narra os jogos com uma braçadeira com as cores do arco-íris, um símbolo LBGTQ+ que se sobrepõe ao machismo histórico. Mas, justiça seja feita, no Catar as mulheres podem contar ao menos com a Sheikha Mozah, mãe do atual emir, que vem conseguindo avanços importantes e defendendo o direito das mulheres à educação.
Das arquibancadas aos novos costumes, paridos na marra como filhos insolentes, a Copa é o espelho onde se reflete um mundo que não é mais o mesmo, embora mulheres transgressoras continuem sendo apedrejadas.
A torcedora do Catar ainda mantém o véu no rosto à espera de um novo tempo | Foto: Adrian Dennis/ AFP
O planeta ainda se move lento para os direitos femininos e pras bandas do Catar é como se a rotação da Terra, que é a rotação do tempo, se movesse mais lentamente ainda. Mas as andorinhas, representadas pelas mulheres na Copa, exibem voos cada vez mais altos, em bandos, numa coreografia libertária que atravessa os séculos para assentar bem ali, no estádio, onde a opressão cede sob o peso da história.
As mulheres sabem muito bem qual é o seu lugar: é o de quem dá à luz a criação de um novo mundo. Não era sem tempo. O grito estava preso na garganta como quem esperava um gol planetário e, definitivamente, feminino.
A sul-coreana faz a ‘diaba’ na Copa: a ordem é se divertir | Foto: Mana Vatsyayana/ AFP
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