Doha, Catar – Louis van Gaal, 71, nem tinha esquentado ainda a cadeira da sala de entrevistas no estádio de Al Bayt quando veio a observação: “Muitas pessoas na Holanda acham que o time não está jogando bem.”
A seleção havia acabado de derrotar o Catar por 2 a 0 na última rodada da fase de grupos. O treinador fez uma carranca. Respondeu que o jornalista, se não estava satisfeito, poderia voltar para casa.
“Não, eu vou ficar até a final”, devolveu o repórter.
“Ótimo. Nos vemos lá, então.”
A partida das quartas de final entre Holanda e Argentina nesta sexta-feira (9), às 16 horas (de Brasília), no Estádio de Lusail opõe dois treinadores com diferenças de idade, mas igualdade no pensamento. Van Gaal é o mais velho técnico da Copa do Mundo. Lionel Scaloni, 44, o mais jovem.
Para o holandês, é tudo ou nada. Vida ou morte. O torneio no Catar é a sua última chance de conquistar o título mais importante de todos. Ele vai deixar a seleção e já deixou claro não planejar voltar. O argentino está no primeiro trabalho da sua carreira. No mês passado, assinou renovação de contrato até 2026, o que deve lhe garantir no Mundial a ser sediado por Estados Unidos, Canadá e México.
“O futebol, no final, é apenas um esporte. Queremos que as pessoas estejam felizes pelo resultado em campo, mas se não acontecer, que se sintam identificadas e valorizadas por esses jogadores”, analisou Scaloni, com a mesma vontade de ser campeão do rival, mas menos urgência.
Ele já havia dito algo semelhante após a vitória por 2 a 0 na fase de grupos sobre o México. Seu auxiliar Pablo Aimar foi flagrado chorando após o gol de Lionel Messi. O treinador depois falaria que um jogo de futebol não pode ser visto de uma maneira tão passional.
“Não podemos viver assim”, resumiu.
Para van Gaal, pode-se, sim. Ele superou câncer na próstata para estar em sua última Copa. Pelo seu ideal de jogo e personalidade forte, colecionou fãs e inimigos no mundo da bola. Ganhou Champions League, ligas e copas nacionais, mundial de clubes. Sempre partiu para o confronto com jornalistas sem a menor cerimônia. Suas conferências de imprensa podem ser qualquer coisa, menos enfadonhas.
“Não vou responder à sua pergunta. Ela é estúpida”, disparou na véspera das quartas de final contra a Argentina.
Era sobre forçar atletas a cobrar pênaltis caso a vaga para a semifinal seja definida dessa forma. Scaloni, bem menos irascível, também perdeu a paciência quando ouviu insinuação de que a Argentina poderia entrar em campo já de olho na decisão por chutes da marca penal.
“Não tem sentido. Como vou pensar em pênaltis sendo que há 120 minutos a jogar? Seria medíocre fazer isso. Pensamos em ganhar no tempo normal ou suplementar”, comentou.
Ele também ironizou as notícias de que Rodrigo De Paul, com uma distensão muscular, não jogaria mais no torneio. Disse que o volante treinou nesta quarta-feira (7) e chamou de “estranha” a informação, com um sorriso de desprezo na ponta dos lábios.
A reação de Van Gaal com a lembrança de Ángel Di María poderia ser mais irritada. Seria condizente com sua maneira de ser. Mas foi o que rendeu o seu momento mais divertido no Qatar. O meia-atacante argentino disse que o holandês foi o pior técnico com o qual trabalhou na carreira. Eles estiveram juntos no Manchester United entre 2015 e 2016.
“Di María é muito bom jogador, mas quando chegou em Manchester teve muitos problemas pessoais. Isso afetou sua condição física. Ele é um dos poucos que se referiu a mim dessa forma. Geralmente é ao contrário.. Acho triste que tenha dito isso. Mas é assim mesmo. Um treinador precisa tomar decisões”, tentou explicar.
“Memphis Depay jogou para mim [no Manchester United] e agora estamos aqui. Eu deixei de escalá-lo algumas vezes. Mesmo assim, podemos nos beijar na boca. Mas não agora”, completou, enquanto o principal atacante da seleção ria e fazia sinal com as mãos que não beijaria ninguém.
Van Gaal já teve grandes relações de amor com seus jogadores e grandes brigas. Robin van Persie lembrou que ao ser dirigido pelo holandês e em clubes era como lidar com duas pessoas completamente diferentes.
Scaloni é quem jamais havia dirigido ninguém na vida e teve sucesso na missão de fazer Lionel Messi ser feliz com a camisa alviceleste. Algo que parecia impossível e que o atacante confessou não acontecer desde 2014, quando foi vice-campeão sob o comando de Alejandro Sabella. Com a calma e assertiva presença do novato, o time conquistou a Copa América do ano passado. A Argentina quebrou um jejum de 28 anos sem um troféu de expressão.
Os dois têm em comum a eterna pregação do equilíbrio na montagem da equipe. Mas mesmo no momento de ironizar o possível desconhecimento tático da imprensa, os dois são diferentes.
Scaloni adota um tom professoral, com leve impaciência, ao dizer, pela milésima vez, que sua seleção não atua no 4-3-3.
“Quem é nosso atacante aberto pela esquerda?”, questiona, como maestro na sala de aula
Van Gaal é mais aberto no aborrecimento. Principalmente quando é confrontado com a diferença do futebol champanhe do seu Ajax campeão da Champions League de 1995 e a Holanda atual, muito mais pragmática.
“O futebol não é o mesmo de 1988 ou 1974”, contesta, ao falar sobre os anos, respectivamente, em que a Holanda conquistou a Eurocopa e foi vice mundial. “É assim que as coisas são. Vocês podem me criticar, mas o futebol evoluiu dessa forma. Atacar e defender era muito mais simples do que é hoje em dia.”
Como se a bola tivesse levantada para ele, Scaloni chutou minutos depois para concordar com o veterano. Como se a diferença idade fosse um número porque na maneira de ver as coisas, os dois são iguais.
“No passado, havia quatro ou cinco jogadores só para atacar e outros só para defender. Isso não existe mais”, completa o argentino.
Há mais que os aproximam. Os dois sonham com a final da Copa do Mundo.
Van Gaal até já marcou encontro com um jornalista neste dia.
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