Vivi para ler, em toda mídia social a que tenho acesso, o infeliz entendimento de uma juíza de direito fluminense que, no ato de decidir, escreveu que o autor da demanda (Chico Buarque de Hollanda) não comprovou a autoria de sua música (Roda Viva).
Li, reli e três li, assombrado, o entendimento da magistrada, como que esperando uma mudança no sentido e significado de suas palavras. Não adiantou nada; o escrito se perpetua e perpetuado está. Com isso a julgadora demarcou o dia em que o judiciário (parte dele) passou o recibo de não saber que Roda Viva é uma dentre várias obras primas de Chico Buarque.
Neste ponto minha angústia conflita com a existência e, ambas, me cobram uma posição acerca da música em si (Roda Viva), no contexto da produção poético-musical de Chico, enquanto artista sem igual de nossa língua.
Não por acaso Chico é o último vencedor do prêmio Camões de literatura em língua portuguesa, além de exímio retratista da condição feminina na sociedade latina, foi e segue sendo um aguerrido combatente poético das ditaduras (civis e militar).
Assim é que Roda Viva compreende severa crítica ao espectro da força imposta pelo regime ditatorial, pródigo em pear a liberdade de expressão, bem assim em ‘desaparecer’ com gente de pensar distinto (Herzog), além de torturar muita gente que sobreviveu (Mírian Leitão) para contar das próprias sevícias…
Para criticar e, ao mesmo tempo, se proteger dos militares que assaltaram o poder e deram um golpe de estado no Brasil em 1964, Chico faz uso de sua arma: a escrita. Mas o fez em letras cifradas que nos permitiam uma multiplicidade de significados e interpretações.
Assim é que se aloca Roda Viva em nosso cancioneiro. A música é de 1968 (quatro anos após o golpe de estado) e já nasceu incomodando os opressores: “tem dias em que a gente se sente, como quem partiu ou morreu. A gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu?”
Roda Viva retrata um homem oprimido por um sistema ilegítimo que impede o exercício pleno da cidadania, na peia comportamental imposta. De consequência é, para ele, Chico, rematado absurdo, um político reacionário que apologiza o fascismo, fazer uso de sua música em causa própria.
A juíza fluminense – há, a juíza fluminense… – de sua parte, disse desconhecer a autoria de Roda Viva. Conhece o que sua excelência já que nos nega a querença de “ter voz ativa e em nosso destino mandar”?
A magistrada “carregou o destino pra lá”, resgatando a Roda Viva de nossos dias, suposto que para não assinalar um direito que Chico detém desde 1968, preferiu a distopia de negar a história.
Deveras, só foi possível negar a vacina (Covid-19) parida em plena efervescência pandêmica, por conta do desconhecimento histórico dos negacionistas. Por igual, só pede pela ditadura quem jamais soube o que é uma ditadura.
Outro tanto, a decisão que ignora a história estabelece um multiverso anímico onde nosso deletério cultural e moral pode usar daquilo que não lhe pertence, ainda que ligado ao patrimônio intelectual de seu maior crítico, ao tempo em que assume desconhecer que, em 1968, em plena efervescência ditatorial, um gênio da língua portuguesa escreveu “roda mundo, roda-gigante, rodamoinho, roda pião, o tempo rodou em um instante, nas voltas do meu coração”.
A mensagem que a magistrada passa em sua decisão é de grandiosa covardia intelectual, já que não acredito que ela desconheça, de verdade, o fato de Chico Buarque ter escrito Roda Viva em 1968. O que ela desconhece é que não se nega ao afrontado a autoria do grito de resistência.
Roda Viva foi meu grito de resistência ao longo de minha vida, naquilo que sempre fui “contra a corrente, até não poder resistir”, suposto que “na volta do barco é que se sente o quanto deixou de cumprir”.
Deixei muito por fazer. Como queria, por exemplo, não ter me educado o suficiente para chamar quem desconhece a poesia de Chico de excelência. Não há excelência alguma na ignorância, consoante bem demonstram os seguidores do messias que acreditam protestar em próprios do exército cantando Vandré.
A vida, imitando a arte, deixa evidente que já “faz tempo que a gente cultiva a mais linda roseira que há, mas eis que chega roda viva e carrega a roseira pra lá”.
Sim, a decisão da juíza fluminense, nos termos em que foi posta, levou minha roseira pra lá, ainda que não tenha o condão de levar junto o perfume das rosas que carregou.
Ficou o perfume da vida, é fato, mas este foi aviltado no mau cheiro insuportável da ignorância seletiva de quem acredita saber o direito, sem nada conhecer da vida.
Sinal dos tempos?
Aguardo, assombrado ainda, novos capítulos. Entrementes não dá para negar que o universo paralelo em que nos encontramos, também chamado multiverso ou distopia, produz essa natureza de situação, absolutamente deletéria cultural de conquistas civilizatórias.
Afinal, um cidadão com mediana capacidade cognitiva (e imagino que juízes de direito componham essa premissa) não pode desconhecer a história recente de seu país, notadamente se a viveu.
Tristes trópicos. Saudade Pai, foi você e não o Chico quem em ensinou que o caminho da saudade cativa e faz força para o tempo parar…
João dos Santos Gomes Filho, advogado