Filme sobre os Racionais MC’s costura imagens raras

São Paulo – Não há nada mais enganoso que a ideia de que um filme possa ou deva ser necessário. Essa mania de querer que a arte seja útil só serve para reservar ao trabalho crítico as rebarbas da apreciação cinematográfica, ou seja, a forma, essa instância que muitos insistem em separar do conteúdo para a poder ignorar com mais facilidade.

Afinal, se um filme é necessário, que diferença faz se ele é cinematograficamente bom ou ruim? É necessário, não importa o que esse ou aquele crítico escreve. Não é por acaso, aliás, que a atividade crítica esteja praticamente desaparecendo debaixo dos escombros da academia ou do jornalismo cultural conteudista.

Por outro lado, certos filmes, como certos artistas, são incontornáveis. Uma vez vindos ao mundo, não se pode desconsiderar a existência dessas obras porque elas jogam luz em uma série de coisas que antes pareciam fadadas ao esquecimento.

Assim é “Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo”, de Juliana Vicente, com relação ao rap em São Paulo. Apesar de um título que o faz parecer necessário, e de contar a história de uma banda, os Racionais MC’s, essencial para o desenvolvimento da música brasileira, o documentário da Netflix alia didatismo e habilidade cinematográfica na aventura um tanto difícil de narrar os mais de 30 anos de carreira dos artistas.

Desde o terceiro LP, “Sobrevivendo no Inferno”, de 1997, não é possível ignorar os Racionais como um dos maiores feitos, senão o maior, do rap brasileiro, algo que já se anunciava com o antológico segundo disco, “Raio X Brasil – Liberdade de Expressão”, de 1993. Não são os únicos trabalhos excelentes do grupo, mas são os dois que os levaram à fama.

Está tudo no filme – a amizade dos quatro racionais, a força das mulheres que os ajudaram, o modo direto e reto de se comunicar com pessoas pretas e periféricas, os encontros no centro de São Paulo e as raízes no Capão Redondo ou na zona norte, a demonização da polícia e os atritos que se seguiram, os intervalos motivados por crises criativas ou existenciais, as mudanças de público após a fama, a recepção no exterior.

Juliana Vicente fez um documentário até certo ponto convencional, mas tão bem realizado, inclusive no bem-vindo didatismo de respeitar a cronologia quando necessário e de destacar cada disco gravado, cada premiação e os momentos tensos como o da Virada Cultural de 2007, que parece pulsar junto com a banda, captando um tanto da intensidade de músicas como “Homem na Estrada” e “Diário de um Detento”.

Felizmente, “Racionais: Das Ruas de São Paulo para o Mundo” fica só na ameaça. A montagem ágil e bem concatenada se revela astuciosa o bastante para evitar esse lugar comum do jornalismo televisivo tão adotado por documentaristas.

Há a consciência de que não basta trabalhar com imagens de arquivo impressionantes, algumas raras, e se apoiar na força das músicas da banda. É preciso realizar uma costura eficiente desse material todo, incluindo, neste caso específico, mas não necessariamente, entrevistas atuais, que contextualizem os momentos mais importantes da trajetória dos músicos.

O filme ainda se presta a mostrar, e bem, como era a capital paulista nos anos 1990, e de que modo o rap se entranhou na cidade como um hino dos excluídos e perseguidos, uma maneira de entrar na mente das pessoas, a música como um trabalho social, como é dito logo no início.

Nesse sentido, o momento mais emocionante de um filme cheio deles vem das imagens de arquivo – os Racionais num show em cima de uma laje e a empolgação de uma enormidade de jovens, na maioria meninas, cantando e dançando com a banda um de seus maiores e melhores sucessos, “Fim de Semana no Parque”, enquanto os ônibus passam ao fundo.

A força poética da letra e o ritmo certeiro da batida se espelham nos rostos felizes e plenos daquelas jovens, mostrando perfeitamente o poder e a sedução do rap quando esses elementos se encaixam com precisão. Quem não fica arrepiado num momento desses?

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