No interior do coração da onça, da mitologia à realidade

“Quando a onça sai para caçar, presságio dela vai assanhando os bichos todo do mato. Passarinho se agita em voo e canto, fica tudo aquelas nuvens de passarinho arreliado, cantando, avisando, em brabeza própria deles, que a dona evém. Esse é o sinal. E tudo, tudo no mundo ao redor manifesta que Jaguara tá trabalhando, assuntando caçada. Até mesmo o vento modifica seu sopro. Quando cunum da grito rouco, estremecido, e depois mergulha, tibungando n’água, esse até outro sinal de que ela tá

chegando. Já as árvores, elas todas silenciam, e é quase impossível escutar a respiração delas. E até peixe dá de nadar d’outra maneira quando a onça pisa areia da beira. Já macacada, é diferente. Macacada vai urrando desigual, cada urro pavoroso que eles só utilizam pra esse aviso mesmo, e isso, pode botar fé, é senha certa que eles dão de que ela, a onça, anda pelas sombras, assondando bicho esquecido de si mesmo, bicho quem não tenta pra algaravia, vacilante, que pinima-pixuma não perdoa é distração nenhuma.”

O texto acima é um trecho de “O Som do Rugido da Onça”, romance ganhador do Prêmio Jabuti 2022 anunciado na última sexta-feira (25). De autoria da escritora pernambucana Micheliny Verunschk, o livro utiliza as imagens da mitologia indígena da onça para apresentar a angustiante condição da mulher brasileira.

Micheliny Verunschk: escritora pernambucana acaba de ganhar prêmio Jabuti com seu primeiro romance, depois de ter lançado quatro livros |  Foto: Renato Parada/ Divulgação 

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Logo nas primeiras páginas, a autora deixa claro o que o leitor encontrará ao longo da narrativa: “Esta é a história da morte de Iñe-e. E também a história de como ela perdeu o seu nome e sua casa. E a história de como permanece em vigilância. De

como foi levada mar afora para uma terra de inimigos E de como, por artes deles, perdeu e também recuperou a sua voz.”

A história de Iñe-e começa na primeira década do século 19. Em 1817 os naturalistas alemães Von Spix e Von Martius desembarcam em solo brasileiro para uma missão exploratória patrocinada por nobres europeus. Quando deixam o país, levam

com eles, em nome da ciência, centenas de exemplares da fauna e da flora do Brasil.

Também levam, sequestradas, uma dúzia de crianças indígenas para exibir na corte como exemplares da fauna brasileira.

Quase todas as crianças morrem durante a viagem. Aportam na Alemanha apenas duas, a pequena Iñe-e e o pequeno Juri. Devidamente batizados pela igreja, recebem os nomes de Isabella e Johann. Mas Johann, em poucos meses, adoece e morre. Alguns meses depois Isabella segue o mesmo caminho. O detalhe reside no fato de que Iñe-e realizou um pacto com uma onça quando tinha poucos anos de vida. Perdida na floresta, sozinha, encontrou uma pintada que, em vez de atacá-la, resolveu povoar sua alma. E quando Iñe-e morre pelas mãos do colonizador, seu espírito assume a forma de onça em busca de vingança.

“O Som do Rugido da Onça” pode ser considerado um típico romance contemporâneo. É formado por várias vozes, possui diferentes narrativas, tempos diferentes, mitologias indígenas de diversas etnias, linguagens distintas e referências múltiplas de passado, presente e futuro. Um romance formado por várias camadas.

No meio do romance, por exemplo, aparece a personagem Josefa, uma mulher dos dias atuais repleta de traumas do passado. Uma mulher que precisa construir sua vida sozinha. Um belo dia, visitando uma exposição histórica em um museu, dá de cara

com uma pintura do início do século 19: o retrato de Iñe-e pintado por um artista alemão. Ao ver a imagem de Iñe-e, Josefa vive uma epifania arrebatadora que abre as comportas de seu próprio passado. Josefa se liga à criança índia como se ela explicasse

todo seu passado íntimo e o sentido do Brasil.

Nascida de cidade de Recife, em 1972, Micheliny Verunschk publicou quatro livros de antes de lançar seu primeiro romance, “Nossa Teresa: Vida e Morte de uma Santa Suicida” em 2014. Depois vieram “Aqui, no Coração do Inferno” (2016), “O Peso do Coração de um Homem” (2017) e “O Amor, esse Obstáculo” (2018).

Em sua jornada, com o coração de onça, Iñe-e percebe que algumas coisas não suportam a dádiva do perdão: “Justiça de onça se faz é no dente.”

|  Foto: Renato Parada/ Divulgação 

SERVIÇO:

“O Som do Rugido da Onça”

Autora – Micheliny Verunschk

Editora – Companhia das Letras

Páginas – 168

Quanto – R$ 59,90 (papel) e R$ 37,90 (e-book)

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