Transição ampla favorece formação da base, apesar de intrigar mercado

A amplitude da equipe de transição nomeada pelo vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB) tende a favorecer a formação de uma base de apoio ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), apesar das reações desfavoráveis do mercado nos últimos dias. A equipe com quase 300 pessoas tem filiados a pelo menos 16 partidos, em decorrência da frente formada para derrotar Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno das eleições.

O grupo de transição é dividido em 31 áreas temáticas e inclui nomes como os dos ex-ministros Celso Amorim (Relações Exteriores), Marina Silva (Meio Ambiente) e Kátia Abreu (Agricultura), do deputado federal eleito Guilherme Boulos (Cidades) e da senadora Simone Tebet (Desenvolvimento Social). Além de integrantes de partidos de esquerda, a equipe que está fazendo um diagnóstico das áreas de atuação do governo tem filiados a legendas de centro e centro-direita, como MDB, PSD e Progressistas.

“É natural que muitos interesses tenham que ser acomodados e que muita gente entre, isso é fruto dessa frente ampla. Isso causa certa dificuldade de coordenação, tem um problema para coordenar todo esse pessoal e conseguir dar uma linha para o novo governo. Ir para todo lugar é como ir para lugar nenhum”, afirma o doutor em Ciência Política Bruno Bolognesi, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Por outro lado, esse amplo espectro poderá favorecer a formação de uma base sólida no Congresso a partir do próximo ano, diz Bolognesi. “Isso pode ter um efeito positivo. Não devemos ver um governo do PT igual ao que estamos acostumados, preocupado em atender somente as bases do partido. Acho que o governo será mais técnico, menos ‘vermelho’, digamos, mais preocupado em acomodar esses interesses de forma menos politizada. Talvez tenha esse ponto positivo, de tirar essa dose de coloração petista, que eu acho que foi uma dificuldade do primeiro governo Lula”.

Na prática, o cientista político avalia que Lula não terá dificuldades para formar sua base, em face da característica dos partidos brasileiros. “O sistema partidário brasileiro é flexível, invertebrado e pouco ideológico. Isso facilita a formação de governos, não é de todo ruim ter partidos fisiológicos quando um governo precisa acomodar muita gente”, afirma Bolognesi. “Tem o orçamento secreto no caminho, muitos interesses negociados para a eleição do Lula, mas está longe de ser ingovernável. A gente não vai ter um governo de conflitos o tempo inteiro”.

Mestre em Filosofia, analista político e professor da UEL, Elve Cenci considera que o grande desafio do novo governo não será formar uma base, mas negociar com o centrão, que deu sustentação a Bolsonaro em troca das emendas ao orçamento, o chamado orçamento secreto. “Os partidos do centrão são sempre governistas e outros já negociaram com o PT antes do segundo turno, caso do MDB. O maior problema será como governar com os interesses do centrão. Esse foi o problema do PT durante o governo de Dilma Rousseff. O movimento do centrão é sempre para tirar o máximo possível”.

Gastos sociais e superAvit 

O período de transição e as falas recentes de Lula têm gerado reações do mercado financeiro. A preocupação é com o possível aumento de gastos na área social, o que poderia comprometer o superávit primário e a credibilidade do país como bom pagador. Nos dias 17 e 18 deste mês, o dólar subiu e o Ibovespa, o índice da Bolsa de Valores de São Paulo, subiu após falas de Lula contra o teto de gastos, o mesmo que o governo Bolsonaro ultrapassou em R$ 794,9 bilhões desde 2019, segundo estudo feito pelo pesquisador Bráulio Borges, da Fundação Getulio Vargas (FGV).

“É normal. É assim no Brasil e no mundo inteiro, a esquerda sempre quando assume um governo tem má vontade do mercado”, diz Bruno Bolognesi. “A esquerda está mais preocupada com o papel do estado e em atender camadas sociais para aumentar a igualdade. É normal que o mercado fique mais desconfiado com um governo de esquerda do que com um governo de direita, ainda que isso soe como hipocrisia no atual cenário”.

A ideia do governo eleito é ultrapassar o teto de gastos em R$ 198 bilhões em 2023, para atender a área social. Além de gerar reações negativas do mercado, a proposta vem encontrando resistências no Congresso e a chamada PEC (Proposta de Emenda Constitucional) ainda não foi apresentada. Segundo a presidente nacional do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann, a PEC é necessária porque o governo Bolsonaro não previu para 2023 os valores para a manutenção do programa Farmácia Popular, para creches e para o pagamento do Auxílio Brasil de R$ 600 (promessa do então candidato à reeleição).

Para Elve Cenci, o mercado vem testando o presidente eleito. “É o momento de o mercado fazer chantagem e testar o governo Lula, que ainda não anunciou seu ministro da Fazenda. Ele (Lula) enfatizou seu compromisso com o Bolsa Família, com as políticas de meio ambiente e os indígenas, mas ainda não revelou quem vai ser o ministro. Quem tem dado alguma segurança para o mercado é o Alckmin”.

Cenci avalia que há um compromisso claro de Lula com a área social, mas também que há certa previsibilidade, pois o petista já foi presidente por dois mandatos. “O PT vai gastar mais na área social e o governo não gosta disso por causa do superávit primário”, diz. “Mas o Lula já foi governo, tem uma previsibilidade. Temos R$ 320 bilhões em reservas cambiais que não tínhamos até 2002, o Lula aproveitou a bonança dos commodities e fez um colchão de reservas. O Brasil não quebrou por causa dessa poupança”.

Limite de gastos

O senador paranaense Oriovisto Guimarães, líder do Podemos no Senado, diz acreditar que o novo governo não conseguirá formar uma maioria para aprovar gastos de R$ 200 bilhões ao longo dos quatro anos, como chegou a ser cogitado. “Estão tentando costurar apoio para apresentarem uma ideia. Acho difícil que consigam apoio para essa loucura que seria R$ 200 bilhões fora do teto por quatro anos”, disse. “Tem que dar uma mão ao social e outra para a responsabilidade fiscal, que é o que vai criar emprego”.

Oriovisto considera aceitáveis gastos de até R$ 80 bilhões acima do teto em 2023, já que se trata de uma situação emergencial e muitos recursos foram cortados do orçamento pelo atual governo. “A vitória nas urnas não é sinônimo de aval para irresponsabilidade fiscal. No meu ponto de vista, R$ 80 bilhões fora do teto, e só para  oano que vem, e aí esse governo mostra a que veio. Administrar com recursos ilimitados, qualquer criança administra”.

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