ESPAÇO ABERTO: Minha cor meu destino

Hoje eu acordei com saudade de mim. Lembranças de verão vez por outra sobem a serra, libertando na exuberância do destino o feromônio do viver. Assim, na ânsia de guardar memórias, meio que engarrafo no vidro do esquecimento o que não foi plural em minha vida, mitigando saudade e recompondo a equação de bem viver, onde menos é sempre mais.

Meu passado dialoga com o dia de hoje e ambos se divertem com a tantada de gente que pede, nos quarteis (‘onde ensinam antiga lição, de morrer pela pátria e viver sem razão’), por um golpe de estado (intervenção militar não é senão eufemismo de golpe) ao som de Vandré. Isso está atiçando a chama da lembrança, ao tempo em que assanha a distopia.

Volto ao tempo. Lá pelo início dos anos 80, no século passado, quando iniciei a vida acadêmica na UEL e vivíamos a descongestão da ditadura militar, suposto que a sombra da opressão parecia diluir ante a urgência da vida.

Os ventos do norte seguiam sem mover moinhos, naquilo que a realidade do mercado mais valia a exploração do descamisado, destacando na bruma das relações uma produção que, a bom tempo, a ética católica reservou aos escravos.

Recordo a vaca que tangemos na travessia do campus, em protesto contra a ditadura, ao tempo em que as personagens do destino desafiam minhas memórias e não chegamos a lugar algum. Lembro da vaca e não dos companheiros de travessia. Devo estar fazendo algo errado.

Eu era negro nos anos 80. Meus heróis eram Ali, Jesse Owens, Luther King, Wladimir, Gandhi – aliás, sou advogado muito por causa do Mahatma. Todavia, enquanto via na causa negra a exploração a céu aberto não desconhecia que o firmamento era o mesmo.

Assim, calado, compunha a essência de minhas inquietações, estabelecendo a constante que a natureza e as potestades nos valiam, sem diferir onde e em quem jogar sua luz, ou fustigar com o vento.

Sob o céu a cor não fazia diferença. A diferença nasceu com o homem e são as diferenças que me fazem voltar ao passado para entender o momento em que estamos, onde há pessoas acampadas em quartéis pedindo por um golpe de estado ao som de Geraldo Vandré.

A distopia está posta e são as diferenças que a explica.

Ao pedir o que desconhece, o homem se sujeita receber aquilo que não quer. Beetlejuice repetido três vezes traria o fantasma, mas qual deles? O da esperança? O da liberdade?

Ebenezer Scrooge, o imortal personagem de Dickens, em verdade não dava vida a uma história e sim a grande metáfora da vida, amparada na valia que damos a pessoas e as coisas, na medida em que estas são acumuláveis (notadamente em uma sociedade capitalista) enquanto aquelas seriam cultuáveis.

O culto ao próximo, por aqui e nesse instante lexotan de nossas vidas, mitiga esperança e propaga desespero, apartando Lozinho de seu amigo Ruço, justamente porque a vida não é uma mesa de sinuca.

No Brasil do mito dos pés de barro a penumbra ofusca a luz, despertando o cavernícola que dormia embalado na própria ignorância. Ao ganhar a luz, não percebeu (o ignóbil) a liberdade, naquilo que o armário abandonado lhe cobrou apego à própria ignorância.

Somos, pois e hoje, a somatória de desilusão e ignorância, uma vez que a perversão das justificativas, para muito além do clássico (é preciso afastar o PT), busca no mercado uma qualquer anunciação – a bruma leve das paixões que vem de dentro…

Passa que mercado é CNPJ, ao passo que a vida real é feita de pessoas físicas (CPF). Assim, enquanto a boiada é feita do gado que o agro afaga, seguimos desconhecendo a merda posta em afetação à camada de ozônio.

Noves fora, não é de fezes bovinas que nós outros nos ocupamos aqui, e sim das esquinas da vida, por onde minas escorrem, enquanto as gerais se anunciam impávidas e múltiplas por suas esquinas.

Não pensei amar esquinas, mas pouca coisa me resta, uma vez que os botecos de ontem parecem fechados no acomodo das discordâncias que expõe feridas e lambem a vida.

Entregue as paixões, me rendo ao que não fui. Construindo pontes com o que me nega e sucumbindo ao que deixei de ser, em face das belezas todas que a vida descortinou. Sou uma fraude com referências.

Meu último instante sucumbe a exigência secular dos inconformados, tangendo lembranças da vaca no instante do gado. Enquanto protestávamos de verdade os demiurgos rezam ao Deus pagão de duas patas, estabelecendo uma não relação na ignorância de nossos dias.

Fui, sim, autor de meus instantes. Estou, hoje, absolutamente prisioneiro da imbecilidade que caminha e canta. Não pensei, todavia, viver para ouvir gente que canta Vandré pedir o que não se pede.

Beetlejuice vade retro. Deus sempre poderá conosco, ainda que as conjunturas neguem o mel valendo o tempo em que a abelha não voou.

Tristes trópicos, onde a cor não vale a própria sombra, suposto que os ventos do norte seguem não movendo moinhos.

Eu, de minha parte, sou a pedra que moe, enquanto a vida segue espiando o rabo dos que aguardam o esforço da calmaria. Seguimos sendo a tempestade, ainda que o vento norte não mova moinhos!

João dos Santos Gomes Filho, advogado

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