100 anos de José Saramago: o Nobel que escrevia em português

São Paulo –  “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever.” Assim começou o único discurso já feito em português para receber o Prêmio Nobel de Literatura.

A voz era de José Saramago, descrevendo aos pomposos suecos a vida de seu avô, Jerônimo, um homem analfabeto e fundamental na sua criação. Um homem que, “ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver”.

Inusitado exaltar saberes divorciados da palavra escrita diante de uma multidão que o celebrava, naquele ano de 1998, como o seu melhor artífice. Mas a verdade é que foi um gesto perfeitamente condizente com seu orador – que completa cem anos de nascimento neste 16 de novembro.

“A formação de meu pai como escritor tem tudo a ver com a origem de onde ele veio”, afirma Violante Matos Saramago, a única filha do autor.

Aqui ela não fala só de seu berço “paupérrimo” entre camponeses, mas dos trabalhos que acumulou antes de ser reconhecido como um dos maiores escritores da língua portuguesa -serralheiro mecânico, auxiliar de escritório, funcionário público.

“Não se trata de ver em mim um espírito aventureiro que foi passando de profissão em profissão por insatisfação”, disse ele em entrevista ao Jornal da Tarde em 1988. “Eu acredito que as circunstâncias podem muito mais do que a nossa vontade, a questão está em aproveitar as circunstâncias para exercer as vontades.”

“A trajetória de Saramago como escritor é tão excepcional que parece inventada”, afirma a crítica literária Leyla Perrone-Moisés, professora emérita da Universidade de São Paulo, que tira do forno a reunião de ensaios “As Artemages de Saramago”.

Segundo ela, a conquista do Nobel se deve tanto ao seu talento quanto “ao fato de ter transferido para seus romances a experiência jamais esquecida de suas origens e sua prática em vários ofícios”.

“As marcas de sua vida pregressa estão presentes em seus livros, tanto no conhecimento que ele revela ter desses ofícios -desenho, gráfica, burocracia, metalurgia- como no manejo hábil das palavras, tratadas em sua materialidade de objetos visuais e sonoros.”

O trabalho de escritor, costumava dizer Saramago, não difere muito do de um operário. Exige o mesmo nível de empenho e disciplina diária. Quando dá certo, é capaz de manufaturar obras como “Ensaio sobre a Cegueira” e “O Ano da Morte de Ricardo Reis”.

É laborioso listar todos os romances célebres publicados por Saramago nas três décadas que separam “Levantado do Chão”, romance de 1980 tratado como o inaugural da leva que o notabilizou, até sua morte em 2010. Vai da crítica histórica de “Memorial do Convento” à contemporânea de “A Caverna”, do incisivo “Evangelho Segundo Jesus Cristo” à ternura de “As Intermitências da Morte.”

É tentador o retrato de Saramago como um trabalhador acometido por um estrépito de brilhantismo aos 58 anos, produzindo a partir daí uma série de obras-primas. Mas é justamente contra essa interpretação que sua filha escreveu o livro “De Memórias nos Fazemos”, procurando mostrar como seu pai acumulou “bagagem de pensamento sobre o mundo”.

Durante a conversa com o repórter, Violante se levanta de repente para pegar uma prova na estante –  volta com uma edição amarelada de “Anna Karênina”, do russo Liev Tolstói, publicada em Portugal em 1959. No crédito da tradução, José Saramago, um rapaz de 37 anos.

A mulher, hoje de rosto enrugado e cabelo grisalho, sorri encabulada quando ouve que o primeiro romance feito por seu pai, “Terra do Pecado”, foi publicado no mesmo mês em que ela nasceu. É um livro do qual pouca gente ouviu falar porque, ao contrário da filha, foi rejeitado com veemência por seu autor.

GUINADA NA CARREIRA

É incontestável, porém, que a carreira literária de Saramago tenha dado uma guinada com “Levantado do Chão”, romance sobre a tomada de consciência dos “condenados da terra” de Portugal, como ele chamava, culminando na Revolução dos Cravos. O que aconteceu ali?

“A partir desse livro ele consegue chegar a uma reprodução da oralidade com que os camponeses contavam suas histórias”, afirma Ricardo Viel, diretor de comunicação da Fundação José Saramago, lembrando como eram caros para o autor os sermões do padre Antônio Vieira. “Depois ele descobre que isso é um estilo, não algo de um livro só.”

Essa estética tem ritmo e sonoridade ímpares, segundo o escritor Milton Hatoum, que salienta como Saramago é capaz de operar mudanças de vozes e interlocutores com parca pontuação e frases muito longas.

“Se quiser entender, tem que ler os livros em voz alta”, sugere Hatoum. “A singularidade de Saramago é apelar à escuta dos leitores. Só assim é possível sentir as mudanças de vozes das personagens em meio ao fluxo do romance.”

É uma oralidade construída com uma linguagem sofisticada, não com a displicência informal do dia a dia -estilo elaborado com habilidade e paciência de ourives, que em pouco mais de uma década de fama já carimbava Saramago nas apostas do Prêmio Nobel.

Em outubro de 1994, Jorge Amado escreveu ao amigo português lamentando. “Ainda não será desta vez que iremos, os quatro, a Estocolmo festejar o Nobel de José”. O japonês Kenzaburo Oe havia ganhado naquele ano.

“De Portugal dizem-me que por lá está toda a gente indignada”, respondeu Saramago. “Sinceramente, acho que não vale a pena. O dinheiro é dos suecos, eles decidem do uso que querem dar-lhe. E nós não podemos viver como se a salvação das nossas duas pátrias dependesse de termos ou não Prêmio Nobel. Mas como cairia bem esse dinheiro!”

PRÊMIO NOBEL

O dinheiro caiu, enfim, quatro anos depois. Quando foi ungido o único Nobel de Literatura português, nada mudou no comportamento de Saramago, segundo sua filha.

“Nunca foi uma pessoa de tertúlias, e continuou assim. Havia patamares distantes entre ele, um empregado de escritório, e a elite cultural e acadêmica.” O que mudou, sim, foi o tamanho de sua notoriedade, que ele “usou para dizer mais alto e claro o que disse ao longo de toda sua vida”.

No frondoso banquete em que o prêmio lhe era oferecido, Saramago dedicou sua breve fala a celebrar o meio século da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Por fim, de trás de seus óculos de fundo de garrafa, agradeceu aos “escritores portugueses e em língua portuguesa” de antes e de hoje.

O discurso era feito por um homem já idoso, mas dava para sentir a presença do jovem aprendiz de mecânico que, aos 17 anos numa biblioteca da escola industrial, descobriu maravilhado a poesia de Fernando Pessoa.

“É por eles que as nossas literaturas existem”, disse Saramago. “Eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar.”

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