SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma extensa filmografia se formou em torno dos eventos que se desenrolaram na Ucrânia desde a onda de protestos conhecida como Euromaidan, iniciada em novembro de 2013. De blockbusters de ação exaltando feitos militares a documentários intimistas, não surpreende que, para além dos protestos e confrontos nas ruas da capital, as atenções tenham se voltado para as regiões separatistas no leste do país, onde a guerra já é uma realidade há anos.
Na filmografia de não ficção, se destacam sobretudo retratos de pessoas que se viram repentinamente implicadas no conflito, seja por verem a própria família dividida em territórios que agora ocupam lados opostos –como em “Relações Próximas”, de 2016, dirigido Vitaly Mansky–, seja por viverem nas cercanias da linha de fogo, caso dos belos “O Distante Latido dos Cães”, de 2017, dirigido por Simon Lereng Wilmont, e “A Terra É Azul Como uma Laranja”, de 2020, dirigido por Iryna Tsilyk, um documentário metalinguístico que acompanha o cotidiano de uma mãe e seus filhos –uma delas, jovem estudante de cinema–, que, em meio à cidade bombardeada, buscam algum alento na encenação de uma ficção baseada em sua própria experiência.
Uma das vozes mais ativas nesse período é a do prolífico diretor Sergei Loznitsa. Sem entrevistas ou locuções, seu documentário “Maidan”, de 2014, observa a ocupação na praça da Independência desde seu início pacífico, com poetas lendo versos em palcos no centro de Kíev, até o violento avanço das forças policiais sobre os manifestantes.
Não se trata, porém, de uma tentativa de explicar didaticamente todos os componentes do movimento –tarefa empreendida por “Winter on Fire: Crise na Ucrânia”, de 2015, dirigido por Evgeny Afineevsky–, mas antes de capturar a atmosfera do local, incluindo a sensação de incerteza acerca do que traria o dia seguinte.
Para nós, que agora acompanhamos a guerra em solo e também nas redes, nenhum filme explora de forma tão densa o aspecto midiático do conflito quanto “Donbass”, de 2018, também de Loznitsa. Vídeos amadores postados online por cidadãos, em sua maioria moradores das regiões separatistas, foram recriados em chave ficcional pelo diretor em 13 sequências independentes que exploram o conflagrado cotidiano local.
Numa delas, uma mulher invade uma reunião e despeja um balde de excrementos sobre o prefeito que a acusava de receber propinas, um empresário é coagido a assinar uma declaração “cedendo” seu carro às autoridades separatistas, um soldado ucraniano é amarrado a um poste e espancado por transeuntes, que registram tudo com seus celulares.
A violência é onipresente, assim como as câmeras. A cada situação, os envolvidos batalham para produzir –e difundir– as imagens mais convincentes. Não à toa, o filme se inicia e se encerra com um trailer em que figurantes são maquiados antes de interpretarem “testemunhas locais” para uma televisão que produz fake news sobre atentados na cidade.
Loznitsa, porém, não busca igualar ambos os lados sob a “névoa da guerra”. O diretor repudia veementemente as ações e discursos dos separatistas. Na atual conjuntura, uma cena em particular ganha nova potência. Depois de ouvir de um oficial que “talvez você não seja um fascista, mas seu avô certamente foi”, um jornalista alemão acompanha o discurso inflamado de outro comandante separatista que promete “libertar a Ucrânia dos fascistas” e, se for preciso, “avançar até Lviv”, no oeste do país, “e depois até a Europa”. No instante seguinte, porém, todos são atingidos pelo forte impacto de uma explosão.
E é no “dia seguinte” ao conflito que se passa a distopia “Atlântida”, dirigida por Valentyn Vasyanovych, vencedor do prêmio de melhor filme na mostra Orizzonti do Festival de Veneza em 2019. Mesmo que se apresente como uma ficção científica, a obra se torna, diante dos eventos recentes, cada vez mais plausível.
Filmada em longos planos abertos, a ação transcorre na desolada região de Donbass em 2025, um ano após o fim da guerra entre Rússia e Ucrânia. O território está repleto de minas, que “levarão de 15 a 20 anos” para serem detonadas.
Sergiy, um ex-combatente sofrendo de estresse pós-traumático, trabalha como operário numa usina siderúrgica que, no entanto, será fechada. O anúncio é feito por um investidor estrangeiro que comunica aos funcionários que “não há escolha”, as novas tecnologias a tornaram obsoleta.
Enquanto um telão exibe o passado glorioso da indústria local filmada em “Entusiasmo: Sinfonia de Donbass”, clássico documentário de Dziga Vertov rodado em 1930, os trabalhadores se sentem enganados. “Nos Estados Unidos, eles não fecham fábricas assim. Eles estão apenas eliminando a concorrência. Foi para isso que você lutou?”, questiona um deles.
Outra estrangeira, especialista em monitoramento ecológico, conta a Sergiy que as águas e o solo da região estão irreversivelmente contaminados, e oferece a ele refúgio no exterior. “Tantos anos de guerra para, no fim, partir?”, ele pergunta, preferindo permanecer em suas perambulações pela região.
Eventualmente, Sergiy conhece Katya, uma arqueóloga que trabalha como voluntária escavando corpos abandonados nas linhas de combate. Só uniformes e insígnias diferenciam os restos mortais de ucranianos, separatistas e russos. “É como se estivéssemos escavando nossa própria história”, ela diz. O que resta é encontrar algum conforto e otimismo no amor surgido entre os dois em meio à ruína humanitária, econômica e ecológica que o filme –e a guerra real, agora expandida para todo o território ucraniano– prenuncia.