SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Hoje tenho um olhar diferente para a vida. Melhorei o relacionamento com a esposa, os dois filhos e as pessoas. Estou mais carinhoso, dou mais atenção aos outros e fiquei mais sensível, principalmente em relação aos acontecimentos trágicos como o de Petrópolis.”
A afirmação é de José Amâncio Xavier Filho, 69, morador de Barra de Guaratiba, no Rio. Há dois anos, ele contraiu o novo coronavírus, mas venceu a doença.
As mudanças desde então atingiram sua vida em vários aspectos.
Amâncio, como gosta de ser chamado, conhece e respeita as suas limitações. O surfe, que gostava de praticar na praia, por enquanto está vivo só nas lembranças.
Mesmo considerado saudável pelos médicos, os exercícios físicos não são pesados. Atualmente, ele é adepto de caminhada e natação, que pratica em casa.
A infecção pelo coronavírus ocorreu no final de fevereiro, início de março de 2020, segundo contou à reportagem. No Brasil, o caso número um da doença foi registrado em 25 de fevereiro, e a primeira morte, em 17 de março, ambos no mesmo ano.
“Não existia protocolo. A gente ouvia falar de Covid, mas não sabia bem o que era isso. Não tinha a menor noção de que poderia ser Covid, até porque sempre fui um cara muito saudável”, conta Amâncio, que passou por um processo do qual os médicos acharam que não sairia mais –dos 42 dias internados, 32 esteve na UTI acompanhado por delírios e duas intubações.
Diabético, seus pulmões, pâncreas e rins foram atingidos. Há um ano e dois meses, faz hemodiálise três vezes por semana e tem a recomendação médica para se submeter a um transplante de rim.
“Fiquei com insuficiência renal parcial. Perdi 13 quilos, saí do hospital de cadeira de rodas e fiz três meses de fisioterapia para voltar a andar. Gostaria de não ter que fazer o transplante. A médica disse que o melhor seria fazê-lo agora, que estou bem, saudável e equalizado, mas no transplante eu posso entrar e não sair, né?”
“Hoje, nas minhas orações eu só peço que Deus me tire dessa história da hemodiálise”, acrescenta ele. “O que eu quero é fazer a minha parte ajudando as pessoas e ser feliz.”
Valorizar o tempo ao lado da família, tirar aprendizados do sofrimento e curar as sequelas. Ao olhar as fotos da filha Maria Júlia, hoje com um ano e sete meses, Ana Júlia da Silva Lopes, 36, moradora de Tanabi (a 477 km da capital paulista) se lembra do que viveu em julho de 2020.
No dia 13 daquele mês, veio o diagnóstico de Covid-19. Dez dias depois nasceu Maria Júlia. O parto foi prematuro, com 31 semanas de gestação, porque a infecção em Ana havia piorado e ela precisou de UTI. A falta de ar, o cansaço excessivo e a febre se misturaram à angústia de não poder conhecer a filha, o que ocorreu 20 dias após o nascimento.
“Quando você está grávida, a primeira coisa que você imagina é a hora de ver o rostinho da sua nenê. Eu a conheci no Dia dos Pais. Foi um presente para o meu marido. Eu queria amamentá-la. Toda vez que eu tirava o leite pensava: é para você, filha. Tinha que jogá-lo fora por causa da Covid”, conta Ana.
As sequelas da doença foram cruéis: dores nas pernas, cansaço excessivo, ganho de peso e depressão. Além disso, foi demitida.
Nos dias atuais, Ana retomou a academia e procura emprego. “A minha vida começou a retomar agora”, afirma. “A gente acaba valorizando mais o tempo com a família. Hoje estamos aqui, mas amanhã poderemos não estar. A pandemia abriu os olhos de uns e fechou os de outros. Vimos muita gente morrer. Quero tirar só aprendizados de tudo o que passei.”
Após ficar 45 dias internada no início de 2020, sendo 21 deles em que esteve dependente de ventilação mecânica artificial (respirador), a aposentada Maria Conceição Moreira da Silva, 72, demorou para se recuperar das sequelas da Covid-19.
No período internada na Santa Casa de Misericórdia de Ituverava (a 348 km de São Paulo), ela sofreu três paradas cardíacas.
Sua situação se complicou por causa das comorbidades, uma vez que ela tem hipertensão, diabetes e hipotireoidismo, além de obesidade e ser ex-fumante. Mesmo assim, conseguiu se recuperar e, com muito custo, pôde voltar à vida normal.
“Até hoje tenho muito pouquinho de sequelas, não é sempre, não. De vez em quando me dá uma dor no nervo do calcanhar, mas é pouca coisa”, conta Maria Conceição.
“Quando voltei dos 45 dias no hospital, não conseguia andar e, por isso, tive de usar cadeira de rodas. Também não conseguia pegar nada, não tinha força nas mãos. Com o tempo, fui treinando, passei para o andador, depois fui pegando nas paredes de casa até que voltei a andar.”
Moradora de Miguelópolis (a 441 km da capital paulista), Maria conta que já está imunizada, com as três doses da vacina contra a Covid-19, e que, mesmo assim, continua se precavendo. “É um grande alívio (estar vacinada), mas a gente não facilita e sai sempre de máscara.”
Já o headhunter (caçador de talentos) Hermes de Araújo Freitas Filho, 30, sofreu um ataque cardíaco, aos 28 anos, por causa da Covid.
Em 2020, ele ficou nove dias internado, sendo quatro na UTI do Hospital Sírio-Libanês, na capital, com o pulmão direito praticamente tomado por uma pneumonia. Com a complicação, sofreu parada cardíaca.
Apesar do susto, conseguiu se recuperar e voltar à rotina. Já imunizado pelas vacinas, ele voltou a testar positivo para Covid em 2021, mas dessa vez sem complicações.
“Senti dores no corpo, cansaço e fraqueza, mas nada comparado à primeira vez. Graças a Deus, não tive nenhuma sequela”, comemora Hermes, revelando que conhece algumas pessoas que ainda sofrem mesmo depois de muito tempo da recuperação.
“Conheço muitas pessoas que ficaram com sequelas, muitas que perderam 100% do olfato e do paladar e não recuperaram mais.”
Projeto atende pessoas com sequelas Em setembro de 2020, a Covid-19 devastou a vida da cirurgiã-dentista Raquel Trevisi, na época com 38 anos, casada e mãe de dois filhos. De Presidente Prudente (a 558 km de São Paulo), era dona de uma saúde invejável e, como atleta de crossfit, chegou a participar de campeonatos.
A doença a atingiu de forma gravíssima. Dos 30 dias de internação, 20 foram na UTI. Raquel passou por duas intubações e teve muitas complicações –emagreceu 25 quilos, trombose nos braços e pernas (lado esquerdo), infecção no sangue, sarcopenia (perda progressiva da massa muscular associada à perda da força muscular), redução do desempenho físico e tetraplegia temporária.
“Carrego cicatrizes do que a Covid fez comigo. Não passo um dia da minha vida sem pensar nisso. O dia inteiro vejo sinais no meu corpo e na minha condição física”, relata.
Dois meses após a alta, o pai de Raquel foi infectado pelo coronavírus, ficou 40 dias internado e morreu.
Raquel pensou, então, em uma forma de ajudar as famílias que não têm condições de arcar com um tratamento completo para a recuperação da doença.
“Quando voltei para casa, um dia, perguntei à enfermeira que estava cuidando de mim como fazem as pessoas que não têm condições? Ela disse ‘não faz'”, conta.
Com o propósito de acolher e ajudar pessoas com sequelas da Covid e famílias, em outubro de 2020, Raquel fundou a ONG Instituto Trevisi, que abraça o Projeto COM VIDA.
O projeto proporciona atendimento com fisioterapeuta, psicólogo, fonoaudiólogo, nutricionista e médicos (dependendo da situação).
Também há doações de suplementação e acolhimento de enlutados. Quase mil famílias já foram atendidas e 200 estão ativas atualmente.
Para conhecer, ajudar ou tornar-se um voluntário do projeto, acesse @projeto.com.vida no Instagram.