‘O Poderoso Chefão’, aos 50 anos, é o monumento de Francis Ford Coppola

(FOLHAPRESS) – Hoje parece simples, mas quem viu a cena há 50 anos, em 1972, quase pulou da poltrona e jamais esqueceu: após os primeiros créditos de “O Poderoso Chefão”, a tela ficava escura; e dela, como se viesse de muito longe, saía uma voz: “Eu acredito na América”, dizia. “Mas o que é isso?” –as pessoas podiam perguntar. Não bastasse começar com a tela escura, vinha essa frase.

E quem, naquele momento, acreditava na América –ou seja, nos Estados Unidos? Ninguém. Nem quem fingia acreditar. Os EUA se afundavam agonicamente na Guerra do Vietnã, os caixões chegavam aos montes com pracinhas mortos, os protestos estavam em toda parte. Mas essa era a pergunta lançada direto em nossa cara. Coppola levava a ironia a sério.

Aos poucos surgia um ator falando diretamente para a câmera, contando sua história. A câmera se afastava bem lentamente e, de costas, via-se o vulto que todos esperavam ver: Marlon Brando, ou Vito Corleone.

Esse início já anunciava o que viria ser o maior clássico do cinema da moderna Hollywood. Um filme clássico, dizem. Mas nem tanto. Com essa abertura, não se pode ser de todo clássico. E depois meia hora de uma festa de casamento servindo como exposição e introdução ao drama que viria a seguir.

Terminada a festa em Nova York, o filme se desloca inesperadamente a Hollywood, para uma sequência intermediária –mas não menos antológica do que tudo que veio antes. É quando conhecemos pessoalmente os métodos brutais do afável Vito Corleone.

Pouco depois, um lance nos remete ao Hitchcock de “Psicose”: um atentado deixa don Vito prostrado no chão. Mas, ao contrário de Janet Leigh em “Psicose”, Vito não morreu.

Em compensação, sua quase morte é o pretexto para que a figura de seu filho Michael comece a se sobressair, a transformar-se do rapaz de bem que era no “capo” mais implacável que já se viu no cinema.

E por aí segue o filme. Remasterizado –como retorna aos cinemas nesta quinta (24)– ou não, imperdível. Nenhuma cena para cortar ou acrescentar, nenhum fotograma a tirar, nada. E, no entanto, quando vemos, parece que tudo correu num mar de rosas. Longe disso.

Coppola brigou metro a metro com a Paramount. Para ter um elenco de desconhecidos, comandado por um iniciante como Al Pacino e um porra-louca como Marlon Brando. Para que o filme se passasse na Nova York do pós-guerra e não em Kansas City, 1970.

Parece óbvio: tratava-se de contrastar o momento de triunfo maior dos EUA, a segunda metade dos anos 1940, com sua maior crise, o Vietnã –e com ele a rebeldia feminista, a sublevação dos negros et cetera.

A Paramount levava mais fé na trama de Mario Puzo do que no quase iniciante Coppola. Mas alguma fé levava, a julgar pela piada que fez circular. Numa reunião de produção, alguém lembrou que filmes de gangster não faziam sucesso desde a década de 1940. “Desta vez será diferente”, objetou alguém. “O filme vai ser feito por um italiano de Nova York, não por um judeu de Los Angeles”.

A confiança nos italianos não era incondicional. Tanto que Coppola teve que dirigir parte do filme com um outro diretor colado nele o tempo todo: caso o estúdio o demitisse, o outro diretor já saberia em que ponto estavam as coisas. E tanto que Coppola teve que enfiar Al Pacino goela abaixo do estúdio, que queria James Caan –o explosivo Sonny, o irmão mais velho de Michael. Demorou até que se convencessem de que tinham um grande ator –e sobretudo o ator certo– no papel.

Os problemas não pararam por aí. Por incrível que pareça, Coppola esteve todo o tempo às turras com seu fotógrafo, Gordon Willis. O tempo demonstraria que Willis era o fotógrafo certo: à exuberância incontível do diretor, ele opunha a discrição de uma luz subexposta. Houve quem reclamasse que não se via nem mesmo os olhos de Marlon Brando. Gordon Willis não se apertava: “Nos quadros de Rembrandt também não”.

Finda a briga, todos sabiam que tinham uma obra-prima em mãos. Não podiam imaginar que fosse durar tanto tempo: a visão a um tempo romântica da máfia comandada por um senhor bonachão completava-se pela violência bárbara que o espírito familiar justificava. Éramos nós contra o mundo. Nós, a família, nós os sicilianos de Nova York. Se a América –os EUA– se desmantelava, a família tinha que permanecer unida contra tudo.

O filme e seu sucesso elevaram Coppola instantaneamente a líder, a chefão de uma geração que tinha Brian De Palma, Martin Scorsese, George Lucas, Steven Spielberg, entre tantos outros cineastas de primeira linha.

Talvez o sucesso tenha lhe subido à cabeça, é verdade. Julgando que podia tudo, depois do forte “A Conversação” e da impecável sequência “O Poderoso Chefão 2”, se deu mal na complicada produção de “Apocalipse Now”. Para completar, a distribuidora impôs uma montagem desastrosa –de que o filme só se recuperaria na versão “Redux”.

Coppola afundou-se em dívidas, faliu, reergueu-se, tornou-se produtor de vinhos, fez um monte de filmes ignorados –por vezes muito bons, como “Tucker”, em 1988, ou “Tetro”, de 2009. Embora a maior parte deles fosse fraca mesmo, nunca lhes faltou ousadia, como se a cada vez precisasse sacudir a poeira do academismo.

De todos os fracassos (ou incompreensões), o que mais lhe tenha magoado terá sido “O Poderoso Chefão 3”, de 1990. Não só por ser o final da saga iniciada 18 anos. Não só por ser o momento em que o drama de Michael Corleone se revelava como tragédia. Mas, sobretudo, porque os críticos atacaram a atuação de sua filha, Sofia.

Quando querem te atingir, atacam sua família, disse ele, magoado. Sim, o espírito de família continuava acima de tudo. Ninguém, fora Francis Ford Coppola, teria feito de “O Poderoso Chefão” o monumento que ele fez.

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