ROSTOV-DO-DON, RÚSSIA (FOLHAPRESS) – Após um domingo de intensa movimentação diplomática, que acabou com a Casa Branca admitindo uma cúpula entre Joe Biden e Vladimir Putin para discutir a crise na Ucrânia, o Kremlin baixou as expectativas nesta segunda (21).
“É prematuro falar sobre algum plano específico para organizar qualquer tipo de cúpula. Não há planos concretos”, afirmou o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.
A perspectiva do encontro gerou um pouco de otimismo em meio às cada vez maiores tensões que opõem a Rússia ao Ocidente. A questão ucraniana, uma guerra civil inconclusa desde 2014 entre separatistas apoiados pelo Kremlin e o governo pró-ocidental de Kiev, acabou se tornando um embate sobre o futuro da segurança na Europa.
Putin quer estabelecer o fim da expansão a leste da Otan, a aliança militar ocidental, e por tabela da União Europeia -desde que o processo começou em 1999, oito anos após o fim da Guerra Fria, 14 antigos satélites de Moscou entraram no clube bélico.
Para fazer valer seu ponto, usou a força e mobilizou entre 150 mil e 190 mil soldados a partir de novembro, incluindo cerca de 30 mil militares que estão em exercícios junto à fronteira norte da Ucrânia, na ditadura aliada da Belarus.
No domingo (20), a situação ficou dramática: russos e belarussos decidiram manter as tropas onde estão, e não retirá-las após dez dias de manobras como havia sido anunciado. Na véspera, Putin convidou o ditador Aleksandr Lukachenko para acompanhar um grande exercício de forças nucleares russas.
O presidente francês, Emmanuel Macron, interveio em uma conversa telefônica de 1h45min com Putin. Na sequência, falou com o líder ucraniano, Volodimir Zelenski, e com Biden. Dessa dança saiu a admissão da cúpula, “em princípio”, segundo a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki.
O pré-requisito para a conversa, disse ela, seria meio óbvio: que não houvesse ação militar contra a Ucrânia. Teoricamente, os chefes das diplomacias de ambos os países, Antony Blinken e Serguei Lavrov, se encontram na quinta (24) em Genebra ou Helsinque, e aí as conversas podem avançar.
O Kremlin não vai facilitar. Há, entre aliados mais incendiários de Putin na mídia russa, uma leitura de que o Ocidente só está querendo enrolar o Kremlin e não discutir a sério as demandas de segurança da Rússia. Nesse grupo, que não necessariamente é ouvido pelo presidente, invasão da Ucrânia é a coisa mais leve que se ouve.
Putin segue insistindo em que não quer guerra enquanto dá sinais na direção contrária, seja para elevar a tensão e sua posição para forçar uma negociação em seus termos, seja para ir às vias de fato.
Os Estados Unidos e o Reino Unido, longe da dependência de projetos energéticos com os russos como Alemanha e França, consideram a decisão de invadir já tomada. Nesta segunda, serviços de inteligência americanos vazaram para redes de TVs novas imagens de satélite que comprovariam a iminência da ação.
Isso vem acontecendo desde janeiro. A invasão já teve duas datas (16 e 20 de fevereiro), e agora será “nos próximos dias”. As previsões ignoram o fato de que uma ação militar, se houver, parece muito mais provável de forma limitada no Donbass (leste ucraniano) do que em todo o país.
Outro dado passado para redes ocidentais é que a Rússia teria mobilizado 75% de suas forças para o ataque. É uma conta sem pé nem cabeça, a não ser que estejam falando de batalhões táticos, o que é bem diferente das Forças Armadas de 900 mil cabeças à disposição de Putin. Até sexta (18), falava-se em 40% dos 150 mil soldados em torno da Ucrânia prontos para ação.
Nesse sentido, Putin segue na frente em termos narrativos. Não sem passar recibos de que pretende usar toda desinformação de seu lado: nesta segunda, o FSB (Serviço Federal de Segurança, principal agência sucessora da KGB soviética) divulgou em seu canal no Telegram a imagem de uma cabana destruída, supostamente por um projétil ucraniano.
Ela seria um posto policial perto de Cherbakovo, uma cidade próxima da fronteira com a chamada República Popular de Donetsk, um dos territórios controlados por separatistas russos étnicos desde a crise de 2014 –quando Putin anexou a Crimeia e fomentou a guerra para evitar uma adesão formal de Kiev, que acabara de ver o governo alinhado ao Kremlin cair, ao Ocidente.
É impossível saber a realidade. Em Rostov-do-Don, maior cidade próxima da fronteira e sede do Distrito Militar do Sul russo, o clima de aparente indiferença entre moradores em relação à crise é pontuado pela descrença generalizada.
Numa amostra nada científica de cinco pessoas, a Folha ouviu a mesma coisa: ninguém sabe exatamente o que está acontecendo na fronteira a cerca de 100 km dali. Há o influxo de refugiados evacuados do Donbass, 60 mil até aqui, mas por ora eles estão sendo retidos em ginásios e estádios ao longo da fronteira.
“Estamos sabendo tudo pela TV, e é um pouco mais do mesmo: a Ucrânia estaria atacando os russos do Donbass, vai haver um genocídio, blá-blá-blá. Eu duvido”, afirma o taxista Ivan Alexeiévitch, que pediu para não ter o sobrenome publicado.