MOSCOU, RÚSSIA (FOLHAPRESS) – No dia em que o temido exercício conjunto entre Rússia e Belarus nas fronteiras ao norte da Ucrânia deveria acabar, o governo da ditadura em Minsk anunciou que os 30 mil soldados e equipamentos militares de Vladimir Putin ficarão onde estão.
O anúncio coube ao Ministério da Defesa de Belarus, que citou “inspeções” que continuariam a ser feitas nas tropas mobilizadas por dez dias devido à tensão apontada no Donbass (leste ucraniano). A região, dominada desde 2014 por separatistas apoiados pelo Kremlin, registrou um domingo de explosões misteriosas e troca de tiros na linha de frente com as forças de Kiev.
Só há duas hipóteses para a manutenção das tropas, movimento de resto negado repetidas vezes pelo Kremlin e pelo ditador belarusso, Aleksandr Lukachenko, que passou a sexta (18) e o sábado em Moscou com Putin e assistiu a uma demonstração de força com mísseis com capacidade nuclear.
Numa, o temor do Ocidente se confirma: as manobras não passavam de uma preparação para um ataque direto a Kiev, conforme sugeriu na quinta (17) o presidente dos EUA, Joe Biden. A fronteira da Belarus fica a meros 200 km da capital ucraniana por rodovia.
Nesse cenário, a escalada militar no Donbass não passar de uma farsa mal elaborada a fim de arrumar um pretexto para a Rússia agir – dos quase 4 milhões de habitantes da região, maioria de russos étnicos, cerca de 700 mil têm passaporte dado ao longo dos anos por Moscou. Nas TVs russas, as chamadas falam em “Kremlin nega invasão, mas vai proteger cidadãos”.
Há outros sinais estranhos, a começar pela troca de fogo na linha de contato de 430 km entre separatistas e ucranianos, que entra no domínio da disputa narrativa e das fake news insondáveis. Foram, diz Kiev, mais de cem violações de cessar-fogo no domingo. Além disso, o exame de metadados de vídeos gravados pela liderança separatista em Donetsk e Lugansk mostra que eles foram feitos antes de sua divulgação, inclusive uma suposta ação contra “sabotadores poloneses” num gasoduto.
Tudo isso deságua no que o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, chamou de o maior risco de guerra na Europa desde 1945, quando o segundo conflito mundial acabou. “Estamos falando de guerra onde não há guerra há 70 anos”, afirmou a vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, que estava na anual Conferência de Segurança de Munique.
A segunda hipótese é aquela que analistas próximos do Kremlin apontam como mais provável. Todo o acima é verdade, mas a função não é precipitar uma guerra, mas sim forçar uma saída diplomática que agrade a Putin e faça valer sua nova postura de uso de força militar –chamada pelo secretário-geral da Otan (aliança militar ocidental), Jens Stoltenberg, de “o novo normal na Europa”.
Arte HTML5/Folhagráfico/AFP https://arte.folha.uol.com.br/mundo/2022/01/08/arte2-folha-explica-crise-ucrania/ *** Putin fala nesta tarde (manhã no Brasil) com o presidente Emmanuel Macron, naquilo que o governo francês chamou de “a última tentativa possível” de resolver a crise sem tiros. As retiradas parciais de tropas, tônica da semana em Moscou, pararam de ser anunciadas.
Ela começou em novembro passado, quando Putin começou a mobilizar o que os EUA dizem ser de 150 mil a 190 mil soldados em torno da Ucrânia. Concomitantemente, ele emitiu um ultimato seco com suas intenções: acabar com o avanço da Otan, e por silogismo da estrutura político-econômica da UE (União Europeia), no antigo espaço soviético.
Desde o fim da Guerra Fria, Moscou perdeu áreas que separavam a Rússia de forças ocidentais, um problema histórico para Moscou. De 1999 para a frente, a aliança absorveu 14 países que foram comunistas, 3 deles integrantes da União Soviética. Putin começou sua reação em 2008, quando guerreou na Geórgia e evitou sua entrada no clube, seguindo para a crise de 2014.
Naquele ano, revoltas com o apoio do Ocidente derrubaram o governo pró-Kremlin em Kiev, que estava sob pressão de Putin para não assinar um acordo de cooperação econômica com a UE. A reação do Kremlin foi anexar a área de maioria russa da Crimeia e fomentar a guerra civil no Donbass, que já matou 14 mil pessoas.
Mas o russo nunca quis absorver o Donbass, pelo enorme custo que isso teria – estimado em até US$ 25 bilhões, cinco vezes mais do despendeu na Crimeia, só para começar. Sua intenção era manter a Ucrânia dividida e, assim, impossibilitada de entrar no clube ocidental.
Até aqui, deu certo. Quando Biden diz que vai aplicar novas sanções aos russos, Putin faz como fez no sábado, quando deu de ombros numa entrevista com Lukachenko e afirmou que ele já lidava com várias punições. Ele conta com os US$ 640 bilhões de reservas, a ajuda eventual da aliada China e, acima de tudo, com o temor europeu de ver o fornecedor de 40% de seu gás natural de fechar as torneiras.
Ainda assim, Putin foi em frente e estabeleceu a crise atual, visando cristalizar a situação. O risco, óbvio, é de que ele surpreenda os que acreditam na pressão contínua sem ir ao fim e, como em 2014, aja militarmente.
Uma invasão total da Ucrânia parece difícil pelos custos humanos e políticos. Já uma ação mais limitada no Donbass, talvez reconhecendo as autoproclamadas repúblicas rebeldes e as inundando de tropas, seria menos custosa – numa de suas proverbiais incontinências verbais, Biden sugeriu dias atrás que a Europa estaria dividida acerca de como reagir a uma incursão militar reduzida.
Como ocorreu nos preparativos para a Primeira Guerra Mundial em 1914, disparados por um assassinato político do herdeiro do trono austro-húngaro, os mecanismos do conflito estão se armando a cada hora. Lá, como agora, havia defensores de que a lógica imperaria e a guerra seria impossível pelos danos financeiros que fariam ao agressor inicial, no caso a Alemanha imperial.
Os tempos são outros, mas Putin agora parece ter na mão os instrumentos para fazer valer os vaticínios do Ocidente, que até aqui só fez escalar a crise na retórica, ou para humilhar os oponentes se extrair as concessões que quer de Kiev e obrigar o governo de Volodimir Zelenski a se acertar com os seus vassalos do Donbass.
Obviamente, tudo isso pode dar errado e descambar para uma guerra, ainda que os países que lideram a Otan já tenham errado a data ao menos três vezes.