SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Rue Bennett nasceu três dias depois dos estragos do 11 de Setembro. Como qualquer jovem da geração Z – os nascidos entre 1995 e 2010 -, cresceu no mundo dos “likes”, seguidores, namoros a distância, nudes, redefinições de gênero e crises de ansiedade.
Ainda assim, nem ela, nem seus amigos – personagens da série “Euphoria”, da HBO Max, agora em sua segunda temporada -, refletem tão fielmente a realidade dessa geração fora das telas. Isso porque os jovens do mundo real vêm se drogando cada vez menos, como apontam dezenas de estudos.
O ano de 2021 teve a maior queda no uso de substâncias ilícitas por adolescentes dos Estados Unidos já registrada desde 1975, segundo o Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Michigan. Embora isso, segundo os pesquisadores, esteja diretamente atrelado ao isolamento social provocado pela pandemia, é também efeito de algo que vem acontecendo bem antes da Covid e em vários países.
Dados do Instituto Nacional de Abuso de Drogas americano mostram que, em 1980, a taxa de jovens americanos de 18 anos que tinham bebido álcool pelo menos uma vez nos 30 dias anteriores à data da realização da pesquisa tinha sido de 72%. Em 2019, a porcentagem foi de 29%.
O mesmo órgão mostra que, em 2001, 25% dos alunos – dos equivalentes aos oitavo, primeiro e terceiro anos no Brasil– já haviam usado ecstasy pelo menos uma vez na vida. Em 2019, o dado foi de 8%. O Serviço Britânico Consultivo de Gravidez indica que a proporção de britânicos –entre 16 e 24 anos– que bebe frequentemente diminuiu de 29%, em 2005, para 20%, em 2017.
Autora de “Generation Z”, Chloe Combi afirma que os zoomers –nome dado aos membros da geração Z – tendem a ter um estilo de vida mais sóbrio. “Há uma consciência maior dos benefícios de uma vida saudável. Eles têm muito mais informações do que as gerações anteriores, e na ponta dos dedos.”
Além da facilidade do acesso à informação, Combi destaca que o medo de aparecer inconsciente em vídeos virais, gravados por celulares, também é um fator que influencia a escolha de evitar o excesso de drogas. Há ainda um crescimento de debates sobre estupro de vulneráveis, o que causa medo nos adolescentes.
No Brasil, os dados variam muito de acordo com a droga utilizada, como mostram estudos da PeNSE, a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar, realizada pelo IBGE. Em 2009, 8,7% dos estudantes entre 13 e 17 anos já haviam experimentado algum tipo de droga ilícita. Dez anos depois, a taxa subiu para 13%. Quanto ao álcool, em 2009, o número era 71,4%, e em 2019, caiu para 63,3%.
Já em “Euphoria”, praticamente todos os personagens são amantes das drogas ou dependentes químicos. A começar pela própria Rue, papel da estrela em ascensão Zendaya. Dependente química, ela se vê diante de altos e baixos.
“Sei que não se deve dizer isso, mas drogas são bem legais”, diz ela, numa cena embalada por cores neon e graves eletrônicos. Com glitter escorrendo pelo rosto, ela sorri e derrete de prazer após dropar um entorpecente. Na cena seguinte, vemos um flashback da overdose que quase tirou a sua vida.
Recentemente, a Resistência Educacional de Abuso de Drogas dos Estados Unidos acusou a série de glamorizar o uso de entorpecentes, o que gerou debates nas redes sociais e uma resposta de Zendaya. “Quero reiterar que ‘Euphoria’ é para o público adulto. Esta temporada, talvez ainda mais do que a anterior, é profundamente emocional e lida com assuntos que podem ser difíceis de assistir”, escreveu a atriz no Instagram.
A discussão sobre o potencial da TV e do cinema em glamorizar temas sensíveis como as drogas não é nova. Na chamada era de ouro de Hollydood, a indústria tabagista e grandes produtores de filmes fizeram acordos comerciais que resultaram em cenas em que o cigarro era apresentado como um ideal de vanguarda, sucesso e rebeldia. É o caso da pose de galã fumante de James Dean em “Juventude Transviada”, de 1955.
“Os adolescentes que têm alta exposição a esse tipo de imagem, quando comparados àqueles com baixa exposição, têm cerca de três vezes mais chances tanto de experimentarem cigarros quanto de se tornarem fumantes regulares”, afirma Rosa Rulff Vargas, psicossocióloga e especialista no assunto.
Segundo Zila Sanchez, pesquisadora de prevenção ao uso de drogas, um dos grandes riscos de usar entorpecentes na adolescência é que, nesta fase da vida, o sistema nervoso central está em processo de formação. A presença de algumas dessas substâncias altera seu desenvolvimento, o que compromete várias habilidades cognitivas.
É por isso que tanto a sobriedade quanto a redução de danos no uso de drogas influenciam uma vida saudável, algo visto com bons olhos por boa parte da geração Z, ainda que pouco atraia os jovens de séries como a americana “Euphoria”, a espanhola “Elite”, a brasileira “Boca a Boca” e a britânica “Skins”.
Professor de história da Universidade de São Paulo e autor de “Drogas – A História do Proibicionismo”, Henrique Carneiro afirma que a temática das drogas é um tema recorrente porque, em muitas culturas, é na juventude que esse tipo de experiência acontece.
“A sexualidade e as drogas são os maiores prazeres universais de que a humanidade dispõe. Sua regulação cultural não coincide, necessariamente, com as fases de iniciação, porque ninguém espera os 18 anos para transar ou fumar um cigarro pela primeira vez”, diz ele.
Essas e outras produções, aliás, mostram jovens fazendo sexo o tempo todo, o que, novamente, vai contra as estatísticas do mundo real, já que eles transam cada vez menos.
Ainda que haja significativa queda no uso juvenil de algumas drogas, houve aumento do número de adolescentes consumindo antidepressivos, analgésicos, depressores, ácidos e alucinógenos, segundo dados coletados por Combi, a autora de “Generation Z”.
“Sempre haverá experimentação e vício”, diz a escritora. “Usar drogas de maneira recreativa é uma maneira de escapismo e de abafar a dor psicológica. E, agora, a geração Z está enfrentando muitos desafios globais.”
Para fazer alusão aos prazeres desse escapismo, “Euphoria” tem cenas lúdicas e usa uma estética sedutora, cheia de brilho, cores neon, efeitos borrados e granulado, de gravações em câmeras VHS. Deixar de retratar o prazer proporcionado pelas drogas seria, segundo Carneiro, o professor da USP, um cinismo moral que cerceia a liberdade artística.
Para além das cenas mergulhadas em cores neon, a série não deixa de mostrar os horrores vividos por quem sofre da dependência química. Ao contrário da era de ouro, analisada por Rulff, a pesquisadora, nenhum produtor de drogas patrocinou a série e são muitas as cenas que chocam o espectador, em especial as da protagonista com crises de abstinência, overdoses, recaídas e bad trips.
Ainda que distorça a realidade, “Euphoria” já teve a terceira temporada confirmada e é um dos assuntos mais comentados nas redes sociais, sobretudo no TikTok, rede que, curiosamente, é a queridinha dos zoomers.