‘Até os Ossos’, quase love story de horror

No papel, não poderia ser mais atraente: um filme-romance-adolescente-ao ponto entre dois jovens e descarnados canibais (não por apetite fashion, mas por herança genética)…e ainda com Timothée Chalamet.

“Até os Ossos/Bones and All”, em exibição na cidade no Cineflix do Aurora Shopping,  é o último frisson do diretor siciliano Luca Guadagnino, agora nos braços de Hollywood. O filme deu a ele o prêmio de direção na recente Mostra de Veneza, e poderia ser uma especie de “Crepúsculo” (por coincidência, em relaçamento no Brasil) para os nostálgicos do cinema dos anos 90 que não se importavam em comer carne crua, embora, provavelmente, essa definição promete mais do que o filme de agora está de fato disposto a entregar.

Se couber aqui a definição de que “Até os Ossos” é meditação sobre o amor entre criaturas que vivem à margem da sociedade, isso pode explicar por que o canibalismo, considerado um dos maiores tabus da sociedade ocidental, funciona não tanto como

metáfora, mas como pretexto para a trama. Mas Guadagnino não parece interessado no gênero fantástico, nem em suas possibilidades subversivas: dá a impressão de que ele não confia em levar às últimas consequências sua proposta, muito original, diga-se. Ele prefere cortar as imagens para uma canção folck para mostrar o que não pode ser mostrado; ou seja, ultrapassar os limites do kitsch (a primeira e bem aceitável parte de “Crepúsculo”).

Filme pode ser visto como uma espécie de “Crepúsculo” pelos nostágicos dos anos 90 |  Foto: Divulgação 

O que resta é um trabalho que quer ser muitas coisas ao mesmo tempo: um filme de “amantes em fuga” com atormentada rebeldia ao volante (e com carisma: Chalamet é acompanhado pela revelação canadense Taylor Russell); um road movie que atravessa a cara mais marginalizada do meio-oeste da América (também profunda como o deep south, por que não ?) dos anos oitenta sob Ronald Reagan (subtema fracamente desenvolvido); uma reformulação canibal e sinistra do cinema “teen”, mas onde faltam caninos mais afiados; e um filme geracional, que reflete sobre o que os pais deixam de herança a seus filhos e como estes sobrevivem às feridas desse legado sem curá-las totalmente.

Pois é justamente aí que “Até os Ossos”, que poderia ser uma sequela da notável série de Guadagnino para a HBO (2020), “We Are Who We Are”, consegue algo semelhante à empatia com seus personagens. “Bones and All” transmite aquela solidão inerente à (pós) adolescência, aquele mundo onde o adulto é ausente ou uma ameaça (o perturbador personagem Sully, o sempre ótimo Mark Rylance), e onde tudo parece possível, exceto a normalidade.

Guadagnino invoca também o tom de fábula do clássico de Terrence Malick, que em “Terras de Ninguem/Badlands” (1973) sublimou a ideia da rebeldia-sem-causa no olhar inocente da garota (Sissy Spacek) que se ligava ao sedutor fora-da-lei vivido por Martin Sheen. Não é tarefa fácil encontrar um tom adequado para converter alguns episódios amorais (a odisséia estradeira dos canibais) em ode ao romantismo adolescente.

“Até os Ossos” pode ser visto antes como filme de gênero e não como um drama com aspirações mais artísticas. Mas cada espectador pode ver e curtir o que quiser. No mínimo é um filme curioso. Porque na tela tudo o que tem a ver com sangue corrente, ou coagulado, ou apenas sangue – e este é um filme com hectolitros – pode desviar o olhar do espectador. E ainda levar junto uma torrente de idéias.

* Confira a programação de cinema no site da FOLHA.

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