O contrato de um ano não passou de dois meses. Ainda no período de experiência, o anti-herói Edibar – o festejado personagem beberrão e desbocado criado pelo artista Lucio Oliveira e publicado pela FOLHA – recebeu bilhete azul como garoto-propaganda da Prefeitura de Apucarana.
Sem justificativas oficiais, mas claramente relacionada a uma campanha de cunho conservador nos meios de comunicação e na Câmara dos Vereadores, a demissão causou revolta e comoção em um ambiente bem distante da província, o mundo do cartum.
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O episódio foi tema de uma carta aberta da Associação dos Cartunistas do Brasil (ACB), entidade liderada por José Alberto Lovetro, o Jal, um dos mais respeitados nomes dos desenhos de humor e colaborador de veículos da grande imprensa.
A ACB defende há 34 anos o direito dos desenhistas e tem articulado uma mobilização em prol do trabalho de Oliveira, um apucaranense que cavou traço a traço seu lugar na elite do mercado editorial e cuja influência se espalhou por toda a Lusofonia e que já começa a ser traduzido em alguns mercados importantes, entre eles os Estados Unidos.
“O humor belisca o cérebro para o que somos e como somos. Assim, um Cascão não faz apologia à não tomar banho, mas ao contrário, nenhuma criança gosta de ser chamada de Cascão e isso ajuda na educação pela higiene. Portanto essa é a função do humor. Se alguém não entende isso então estamos ainda vivendo nos tempos das cavernas”, diz um trecho do manifesto.
Os ataques ao contrato da prefeitura com o criador de Edibar partiu de publicações online e basearam um requerimento na Câmara dos Vereadores pedindo informações ao prefeito Junior da Femac (PSD) sobre o uso do personagem em campanhas oficiais.
O autor, Moisés Tavares Domingos, justificou seu pedido pelas supostas características machistas do personagem, além da sua suposta enfermidade, o alcoolismo. O vereador declarou que a representação do município por um alcoólatra seria um desrespeito a quem sofre com a doença.
Mesmo rejeitado por 6 votos a 3, o requerimento que argumentava o risco do personagem transmitir uma imagem negativa do Município, teve força suficiente para provocar o recuo do governo municipal, que não se pronunciou publicamente sobre o rompimento.
“Sequer me chamaram para conversar. Foi uma decisão unilateral, que fiquei sabendo depois de ser publicada em Diário Oficial”, reclama Oliveira, que não chegou a escrever e desenhar nem uma dezena de peças com o senhor calvo, narigudo e de olhos esbugalhados como “funcionário” da Prefeitura.
“O mais triste desta história toda é que as pessoas que atacaram o Edibar são pessoas que não conhecem o personagem e que não acompanham meu trabalho”, lamenta. “Caso contrário, saberiam que ele é machista mas apanha da Edmunda sem jamais agredi-la, que é alcoólico mas faz tratamento contra a cirrose e que já foi alertado que pode morrer se não parar de beber. Não é transmitida nenhuma mensagem negativa”, defende o autor.
| Foto: Lucio Oliveira/ Divulgação
FALTA DISCERNIMENTO
Para a ACB, o desenhista artista foi vítima de “um movimento de pessoas retrógradas que não sabem discernir arte e humor de pensamentos preconceituosos”. A carta da entidade presidida por Jal afirma que “o Brasil precisa urgentemente de educação cultural”.
O impulso dos colegas em ser solidário a Lucio Oliveira provocou muitas manifestações em blogs e redes sociais. O episódio foi comentado até em Portugal, onde Edibar é sucesso de público e crítica, rendendo várias premiações para o cartunista apucaranense.
Paulo Monteiro organizador do Festival de Beja, no Alentejo, celebração das mais importantes do cartum em Portugal, comentou a demissão de Edibar, comprovando que a onda de homenagens a Oliveira atravessou o oceano.
“É claro que Edibar, todos o sabemos, é apenas um personagem de papel. E aos personagens de papel tudo é permitido: as suas transgressões não magoam ninguém; as suas traições não resultam nas lágrimas de ninguém (a não ser nas nossas, de tanto rir); as suas bebedeiras não são de cerveja, são de nanquim… É por isso que lhe desculpamos todos os excessos”, escreveu o português.
“Nunca tinha visto a tentativa de se censurar um personagem de tiras por ser quem é: alguém imperfeito como milhões de outros seres iguaizinhos a ele. Um personagem fictício, irônico, politicamente incorreto, extremamente engraçado e popular (no Brasil e em Portugal), homenageado com exposição em Beja, um dos mais importantes festivais europeus de BD – como eles chamam HQ- o que mostra seu alcance internacional. Isso tudo se deve à genialidade de seu criador e deveríamos ter orgulho disso”, escreveu Bira Dantas, outro cartunista consagrado.
Para o jornalista, desenhista e editor Francisco Ucha, os ataques a Edibar miram seu criador. “Impedem que Lucio use sua criação na própria cidade, isso é uma vergonha. Tenho certeza que a maioria da população de Apucarana não concorda com isso. É apenas uma minoria que tem muita capacidade de fazer barulho e intimidar”, avalia o ex-editor do jornal da Associação Brasileira de Imprensa. “Isso me provocou muita indignação”, desabafou.
Aroeira, expoente do humor brasileiro que também se declara “grande fã e seguidor fiel do Edibar”, foi outro medalhão que se pronunciou sobre o caso. “Mas que tremenda falta de graça da Prefeitura de Apucarana! É uma sina do desenhista de humor. Por muitos motivos, a gente acaba sempre incomodando…Bom, perde a Prefeitura de Apucarana pela falta de senso de humor”.
Dantas faz comparações do incidente em Apucarana com fatos históricos. “O psiquiatra Fredric Wertham manipulou dados para afirmar que os quadrinhos levavam jovens a praticar crimes. O senador norte-americano Joseph McCarthy criou uma narrativa hipócrita e falsamente moralista, uma paranoia truculenta que levou à criação do Código de Ética para censurar as revistas”, cita. “Todo este discurso anti-Edibar tem este cheiro rançoso e hipócrita que há anos vem se espalhando pelo país”.
Ele estranha a argumentação ocasional dos desafetos de Edibar. “Desde 2001, as tiras se popularizaram na internet e nunca vi ninguém dizer que as piadas prejudicassem membros de programas de recuperação de alcoólicos ou fortalecessem casos de machismo e misoginia”, constata.
VALOR ARTÍSTICO
Jal lembra que personagens de grande valor artístico e amados pelo público podem se tornar algo didático com suas condutas tortas. “O Amigo da Onça, de Péricles, fez grande sucesso na revista O Cruzeiro nos anos 1940 a 1960 justamente para colocar em evidência o caráter brasileiro do “jeitinho” e da falta de solidariedade por conta de pessoas que só pensam em si. Por isso até hoje, para dizer que uma pessoa tem essas características ainda é chamada de amigo da onça”, pondera. “Homer Simpson, que é completamente cheio de defeitos, hoje é homenageado por todos os norte-americanos”, completa.
Ucha lembra que a relação entre Oliveira e o governo municipal era tão boa que havia planos para aprofundá-la.“E a estátua? A ideia da construção de uma estátua do Edibar era genial, se tornaria uma atração turística muito inusitada e interessante”. E evoca um velho consumidor de espinafre tatuado, violento, fumante compulsivo, imortalizado em um museu temático em Chester (Illinnois/ EUA), terra do seu criador E.C. Segar. Por sinal, o Marinheiro Popeye foi primeiro herói dos quadrinhos a ter uma estátua instalada em frente à sede de um governo municipal, na texana Crystal City, localidade mais tolerante naquele distante 1937 do que a Apucarana de 2022.
“Querer calar Edibar é querer calar a nossa própria voz. A voz de quem consegue se rir de si próprio. Sem esse espírito, sem essa capacidade, valemos muito pouco… Na verdade, Lucio podia ter criado Edibar como um trabalhador incansável, um marido carinhoso, um genro exemplar e um abstêmio convicto. Mas isso não teria graça nenhuma!”, resumiu o português Paulo Monteiro.
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