Em mais um esforço que não esconde sua bem vinda ambição de universalidade temática, o jovem (48) diretor de “Uma Mulher Fantástica” (Oscar de melhor filme internacional em 2018) fez o seguinte em “O Milagre”, mais um passo corajoso da Netflix em direção à inteligência do espectador: colocou inicialmente em tensão, e depois em confronto direto, as forças da crença pessoal e da religião institucionalizada com as do pensamento científico, enfatizando ao mesmo tempo uma autoridade global talvez mais poderosa: a do patriarcado e seus vícios enraizados desde tempos antigos.
A voz da atriz Florence Pugh abre o maravilhoso prólogo que serve de ponte entre o velho (?) século 19 e este nosso jovem (?) 21, aliás em muitos aspectos ainda bem parecidos. Ela se encarrega de dar prólogo a história, antes de se transformar em Lib Wright, enfermeira londrina com uma missão: ir até o interior rural da Irlanda para “observar” uma menina de onze anos. Dizem os membros do comitê que ela não come há 120 dias e ainda mantém boa saúde. Um milagre no sentido estritamente religioso da palavra ou uma artimanha familiar e/ou regional para atrair peregrinos e curiosos? O turno da protagonista é de doze horas; para completar o dia, as outras doze para que o cientificismo, ou o demo, não vença o jogo da fé. E assim Lib convive com a garota Anna Donnell (a quase debutante Kíla Lord Cassidy), que se recusa a comer qualquer alimento e afirma receber o “maná do céu”
com todos os nutrientes necessários para sua existência fisiológica.
Nada fácil a tarefa da enfermeira que, além de zelar pelo bem-estar de Anna, começa a investigar, como detetive amadora, a origem e o método do possível “truque”, convencida de que milagres, se existiram um dia, já não têm lugar no século XIX. Ao longo desta jornada de vigílias, ela conhece um jornalista inglês bisbilhotando o caso (John Burke), que passa de uma presença um tanto irritante a um possível aliado. A resolução do caso e alguns detalhes do passado dos protagonistas moldam em grande
parte a essência da história, e as ressonâncias contemporâneas ligadas ao fanatismo religioso acabam se dirigindo para um epílogo esperançoso, mesmo que seja apenas uma exceção. Que confirma várias regras.
| Foto: Divulgação
Este novo filme rodado na Irlanda pelo diretor chileno do extraordinário “Glória” é história estranha e sugestiva sobre fanatismo religioso e os extremos a que ele pode chegar. E deixa evidente (com as sutilezas possíveis na abordagem do caso) a questão
do abuso incestuoso que deu origem ao “milagre da inanição”. Embora o enredo se passe na Irlanda do século 19, o filme transmite a necessária atualidade, algo que o próprio Lelio deixa evidente abrindo e fechando a história com uma espécie de filmagem de bastidores, uma escolha curiosa para este tipo de filme.
Um desconsolo, que o filme não tenha sido lançado no Brasil nas salas e apreciado como merecia, nas velhas e enormes telas de cinema, indo direto para o streaming. A obra ganhou forma pela visão em ‘widescreen’ da diretora de fotografia e iluminação da
australiana Ari Wegner (“Power of the Dog/O Ataque dos Cães”, “Lady Macbeth”). O que ela obtém é um enquadramento pictórico com mínimos detalhes e criteriosa seleção de espaços e fundos.
Um estudo hipnótico de luz e sombra, com técnicas de claro-escuro dignas do melhor Caravaggio e uma representação de atmosferas vampirescas e misteriosas. A luz parece querer escapar das molduras do quadro, dando uma sensação carregada de presságios sombrios, em busca de fantasmas desse e de outros mundos. E esta alquimia meio onírica combina em unísso banda sonora perturbadora do músico eletrônico Mathew Herbert.
Sons tribais, primitivos, com raízes espirituais. A trilha tira partido de sonoridades perturbadoras, minimalistas, e de notas agudas que colocam a dúvida à frente dos desígnios da fé.
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