Kiev ou Kyiv? Entenda a diferença na grafia do nome da capital da Ucrânia

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O nome da capital da Ucrânia, Kiev, ora cenário de ações militares russas brutais, pode ser escrito e pronunciado de outra maneira, Kyiv. Os dois usos são corretos, mas a diferença faz parte de uma discussão mais ampla em que linguística, história e geopolítica se encontram.

Assim como o espanhol e o português são línguas diferentes com muitas semelhanças e se utilizam de um mesmo alfabeto (o romano), o ucraniano e o russo também são idiomas distintos que dividem um alfabeto, o cirílico.

A diferença entre Kiev e Kyiv surge da transliteração (quando vertemos uma palavra de um alfabeto a outro) das línguas russa e ucraniana, respectivamente. Em russo, escreve-se assim o nome da capital: ???? (pronunciado ki-iev). E, em ucraniano, ???? (pronunciado ki-iv).

A escolha entre Kiev e Kyiv está baseada nas relações geopolíticas entre as nações e de qual língua tomamos como base para traduzir a região. Há cerca de 800 anos, as línguas russa, ucraniana e bielorrussa eram uma só: o eslavo oriental, falado na região onde hoje estão Ucrânia, Belarus e a parte europeia da Rússia.

“O que a gente chama de língua ucraniana é uma língua bastante parecida com o eslavo oriental do ponto de vista fonético, muito mais conservadora do que o russo, que já derivou bastante. Mas é uma língua muito influenciada pelo polonês do ponto de vista lexical”, explica Lucas Simone, historiador e doutor em literatura e cultura russa pela USP.

O especialista afirma que essas diferenças lexicais e fonéticas, que surgiram gradativamente, tornaram comum que haja duas versões de uma mesma palavra, uma versão em russo e uma versão em ucraniano.

É o caso do próprio nome do presidente Vladimir Putin (versão russa consagrada) ou Volodimir Putin (versão ucraniana). Da mesma forma, o nome do presidente ucraniano Volodimir Zelenski, em versão russa, seria Vladimir.

Desde o século 17, quando a Ucrânia integrava o Império Russo, tornou-se comum a exportação dos nomes de cidades ucranianas em versão russa. Além disso, no período czarista (1547-1917), a língua ucraniana foi muito perseguida pelo regime, chegando a ser proibida.

No caso do século 20, período em que a Ucrânia esteve majoritariamente sob o domínio de Moscou, a “questão da língua” foi tratada de diferentes maneiras pela União Soviética. Na primeira década, houve um período de defesa das línguas e de costumes nacionais dos diferentes territórios. Depois, vem o “período de russificação”, em que a língua ucraniana perde espaço, sobretudo nas grandes cidades.

Essa internacionalização das versões russas é o que faz com que, no Brasil, utilizemos Kiev, fazendo a transliteração do russo. É a grafia adotada pela Folha.

O debate sobre qual uso seria mais adequado ganhou espaço nas redes sociais nos últimos dias, após a invasão da Ucrânia pela Rússia, e a hashtag #KyivNotKiev (Kyiv, não Kiev) ser usada nas redes sociais em demonstrações de apoio à Ucrânia.

A hashtag é, na verdade, slogan de uma campanha do ministério de Negócios Estrangeiros da Ucrânia que teve início em 2018 e visava, entre outras coisas, fortalecer a identidade ucraniana no cenário internacional, desvencilhando-a da Rússia.

A iniciativa tinha como um dos objetivos convencer veículos de imprensa e órgãos de Estado estrangeiros, bem como aeroportos, a adotarem a grafia ucraniana, Kyiv, para se referir à capital.

Surtiu efeito. Grandes jornais de língua inglesa, como The New York Times, The Economist e The Guardian, padronizaram em suas Redações o uso de Kyiv. O governo dos Estados Unidos também adotou oficialmente a designação ucraniana um ano após o início da campanha.

“Para a questão geopolítica, a língua foi usada como um fator de aglutinação de ideias nacionalistas no século 19 e é um dos pontos principais de sustentação da Ucrânia como um Estado independente hoje”, diz Simone.

“O fato de existir uma língua que não o russo é um dos fatores que justificam a existência desse Estado. Por isso houve uma tentativa forte de ucranização da população depois da independência [de 1991], semelhante aos processos bem-sucedidos de Israel e mal-sucedidos na Irlanda, de tentar introduzir uma língua que vinha em declínio”, completa.

Na postagem abaixo, de 2020, o perfil oficial do governo da Ucrânia no Twitter explica a diferença entre as grafias da capital e pede para que a CNN adote a formulação ucraniana. “Aquele Kiev ao estilo soviético é maluquice”, diz o post, que também afirma que “a maioria do aeroportos e veículos de mídia” utilizam “Kyiv” e que o Facebook a havia adotado recentemente.

Por fim, Simone ressalta que há muita dúvida em relação às “minorias de falantes de russo” ou “maioria falante de ucraniano”. Não é essa a questão.

“Para nós, brasileiros, a dificuldade em entender essa diferença na língua é porque moramos em um país onde o pertencimento jurídico se dá mediante o nascimento. Na Europa nada disso vale, o princípio jurídico é da descendência: a pessoa pertence à nacionalidade de seus ancestrais”, explica.

Kiev, por exemplo, é uma cidade em que se fala majoritariamente o russo, nem por isso as pessoas deixam de se entender como ucranianas. Assim, a disputa baseada na língua não tem relação com uma minoria ou maioria falante, mas da afirmação de uma identidade nacional ucraniana independente.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *