São Paulo – Quando Wolfgang se mete numa confusão na hora do recreio e as outras crianças da escola começam a agredi-lo, só um dos novos colegas fica ao seu lado. “Vocês deveriam agradecer a ele e à irmã”, o menino grita. “Eles vieram da Alemanha para nos trazer sangue novo!”
“Quem precisa de sangue de alemães?”, pergunta um dos brigões. Barbara, irmã gêmea de Wolfgang, está furiosa quando entra na discussão: “Vocês precisam, porque não têm como substituir sozinhos os negros!” O irmão olha em volta e não vê nenhuma criança negra na escola.
Abandonados num orfanato após a derrota do nazismo na Segunda Guerra Mundial e enviados à África do Sul para serem adotados por uma família de fazendeiros brancos, descendentes de colonos europeus, Wolf e Barbie são os protagonistas do romance “Os Órfãos”, da escritora francesa Bessora.
Primeiro título da autora traduzido no Brasil, o livro é inspirado na história real de um grupo de 83 crianças alemãs que chegou à África do Sul em 1948, quando a minoria branca começou a criar o apartheid, o regime de segregação racial imposto ao país até o início dos anos 1990.
A desorientação dos personagens é tema central do romance. Os dois irmãos sentem-se tão deslocados como crianças, no país estranho para o qual foram enviados, quanto mais tarde, ao revisitar como adultos o lugar em que nasceram e que não conseguem mais reconhecer.
“Essas crianças não tiveram escolha, e uma parte de suas vidas foi roubada”, diz a escritora em entrevista por videoconferência. “Me interessa entender como elas lidaram com suas culpas e suas neuroses, e como se tornaram resilientes a ponto de sobreviver.”
Bessora estará no Brasil na próxima semana, convidada pela Festa Literária Internacional de Paraty , para uma mesa de debates que acontece na quinta-feira (24). Ela dividirá uma das mesas principais da Flip com duas outras autoras marcadas por deslocamentos entre diferentes culturas, a brasileira Carol Bensimon e a suíça Prisca Agustoni.
Nascida na Bélgica, filha de uma suíça e um diplomata do Gabão, Sandrine Bessora Nan Nguema tem tripla cidadania, francesa, suíça e gabonense. Ela cresceu entre os Estados Unidos, a Europa e a África e largou um emprego no mercado financeiro para estudar antropologia e se dedicar à literatura, assinando seus livros apenas como Bessora.
“Os Órfãos” é o 11º romance da escritora de 53 anos. Ela tomou conhecimento do episódio histórico que a inspirou ao assistir um documentário sobre os órfãos alemães na televisão. Ficou obcecada pela história, viajou até a África do Sul em busca de sobreviventes e encontrou um deles, Peter Ammermann.
Ele é o menino louro que olha assustado para o alto na fotografia na capa do livro, tirada no dia em que desembarcou com seus dois irmãos na Cidade do Cabo. Ammermann tinha oito anos ao chegar e morreu na África do Sul, aos 81 anos, em março. “Os Órfãos” é dedicado a ele e a sua mulher indiana, Rabia Ismail.
Embora intenções humanitárias tenham justificado o acolhimento das crianças na época, os grupos supremacistas que arrecadaram fundos para a iniciativa também sonhavam povoar a África do Sul com milhares de arianos e seus descendentes, o que nunca conseguiram.
Os personagens do romance de Bessora reagem de maneiras diferentes à situação. Wolf se rebela contra a família adotiva e vive atormentado por ser tratado como símbolo do nazismo e do apartheid. Barbie busca acomodação e tenta se integrar ao país adotivo.
RACISMO EM TODA PARTE
A narrativa avança por décadas sem oferecer conforto. “Quase não há rotina para que se instaure uma proximidade convidativa dos personagens”, nota a escritora brasileira Natalia Timerman, numa resenha da obra. “Tudo é acontecimento, tudo é motor, quase tudo é tragédia.”
O racismo está em toda parte, e não apenas nas descrições do cotidiano sob o apartheid. Quando Wolf reencontra uma amiga de infância na Alemanha, ela diz que o país faria bem se imitasse os segregacionistas para se proteger contra uma invasão do Leste Europeu.
Na França, um importador de vinhos com quem ele negocia sugere desenhos de leões e girafas nos rótulos das garrafas produzidas na África do Sul, após descartar a ideia de um guerreiro zulu. “Seria mais consensual”, ele justifica, antes de olhar torto para a filha mestiça de Wolf.
Bessora rejeita estereótipos ao tratar do assunto. “Não é porque você é um homem branco, louro e de olhos azuis como Wolf que você é um racista, um dominador”, afirma. “Acho que cada pessoa é única, com sua própria história. Peter e Wolf são vítimas, não carrascos.”
A escritora evita o proselitismo e as respostas fáceis. “Não quero fazer palestra para o leitor, mas o meu ponto de vista é que raças não existem, a não ser como representação, mito, ideia”, diz. “Busco representar as pessoas como seres humanos, não como monstros ou coisas.”
Sabe-se desde o início que Wolf não acabará bem, porque sua história é intercalada com fragmentos de diálogos em que médicos, enfermeiros e familiares conversam sobre o que fazer com ele no quarto de hospital em que termina seus dias com uma bala alojada na cabeça.
“Mesmo décadas após o fim do apartheid, ainda é muito difícil ser uma pessoa negra na África do Sul”, diz Bessora. No desfecho do livro, a frustração ecoa na mente daquele que aperta o gatilho: “Os negros não estão em casa, aqui. A casa deles não fica em lugar nenhum.”
| Foto: Divulgação
SERVIÇO:
Os Órfãos
Autora: Bessora
Editora Relicário Edições
Tradução Adriana Lisboa
Preço R$ 62,90 (244 págs.)
Receba nossas notícias direto no seu celular, envie, também, suas fotos para a seção ‘A cidade fala’. Adicione o WhatsApp da FOLHA por meio do número (43) 99869-0068 ou pelo link