SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Minhas impressões? Sinto-me muito bem aqui. Que culpa tenho eu de estar sozinha?”
A frase é de Almerinda Farias Gama, em resposta a um jornalista, na ocasião em que foi a única mulher a votar e ser votada nas eleições dos deputados classistas da classe trabalhadora para a Assembleia Constituinte de 1933.
A foto em preto e branco de Almerinda estampa até hoje diferentes textos sobre a conquista do voto feminino. Com um amplo e elegante sorriso, ela insere a cédula com seu voto enquanto é observada pelos homens ao seu redor.
Almerinda integrava a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), associação criada em 1922 e liderada por Bertha Lutz, que é tida como uma das principais pioneiras na luta pelo sufrágio das mulheres no país.
“É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo”. A previsão de que as mulheres também tinham direito ao voto foi incluída pela primeira vez na legislação nacional brasileira em fevereiro de 1932.
Considerado hoje como uma das principais inovações do Código Eleitoral de 1932, que completa 90 anos e também estabeleceu o voto secreto e criou a Justiça Eleitoral, o voto feminino foi conquistado após intensa pressão e mobilização por parte dos movimentos sufragistas da época e quase nasceu com severas restrições.
A mobilização das feministas foi importante não só para pautar o voto feminino ao longo da Primeira República (1889-1930), como para pressionar para que o texto final do Código Eleitoral decretado por Getúlio Vargas não trouxesse restrições específicas às mulheres.
De acordo com o anteprojeto da lei eleitoral que veio a público em agosto de 1931, poderiam votar apenas as mulheres viúvas e solteiras com renda própria. Já as mulheres casadas, mesmo aquelas com renda própria, deveriam pedir autorização do marido.
O texto foi alvo de críticas das feministas.
Há registros de cartas da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino datadas de dezembro de 1931, destinadas a Vargas, então chefe do Governo Provisório, e aos demais membros da comissão da reforma eleitoral, defendendo que a redação ampliasse o direito ao voto sem distinção de sexo.
O país vivia um período conturbado. Em 1930, o presidente Washington Luís foi deposto e Getúlio Vargas assumiu o poder. A Constituição anterior estava suspensa, assim como as eleições, e o Congresso, fechado.
“O movimento [feminista] fez muita pressão em favor do voto sair igual ao voto masculino, como de fato saiu no final”, diz Mônica Karawejczyk, que é professora da PUC-RS e autora do livro “Mulher Deve Votar? O Código Eleitoral de 1932 e a Conquista do Sufrágio Feminino”.
A pesquisadora aponta também a reformulação da comissão eleitoral após o anteprojeto, com a troca de parte dos membros, como fator importante para que a regra terminasse por ser alterada.
Embora as principais restrições tenham sido retiradas em 1932, a regra ainda fazia diferença entre homens e mulheres, já que o alistamento eleitoral feminino, diferentemente do masculino, não era obrigatório.
Ao justificar a distinção, em versão comentada do código, o integrante da comissão Assis Brasil escreveu que, de partida, conceder a perfeita igualdade política dos sexos seria “destroçar num só momento, sem uma preparação prévia, uma tradição secular e um sistema de direito privado, em que a mulher casada ainda está colocada em situação desigual à do homem”.
Na Constituição de 1934, a obrigatoriedade do voto foi estendida apenas às mulheres que fossem servidoras públicas. Somente em 1946, a obrigatoriedade do voto passou a ser para ambos os sexos, sem distinção.
A introdução do voto feminino abriu caminho não só para que as mulheres votassem, mas para que fossem candidatas.
A medida foi alvo de críticas à época, como do então ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Antônio Bento de Faria.
“Ao direito de voto corresponde o de ser votado, mas seria de um ridículo incomensurável tornar acessível à mulher a chefia suprema da nação, permitindo-lhe a possibilidade de assumir a direção suprema das forças de terra e mar!!!”
Apenas uma mulher foi eleita para a Assembleia Constituinte em 1933: a paulista Carlota de Queirós. Já Bertha Lutz ficou na suplência. Entre os deputados classistas, Almerinda Farias não foi eleita.
De acordo com a Constituição anterior, o direito de ser alistado como eleitor estava entre as condições de elegibilidade para o Congresso Nacional.
Mesmo com o marco histórico da conquista do voto feminino, boa parte das mulheres e da população negra e pobre continuaria excluída do direito ao voto por muitas décadas. Apenas em 1985, tal direito foi ampliado aos analfabetos.
INVISIBILIDADE DA HISTÓRIA DAS SUFRAGISTAS
Apesar do papel que as sufragistas desempenharam, Mônica (PUC-RS) aponta que ainda há pouca pesquisa sobre a história dessas mulheres e sobre as associações feministas.
“A gente sabe pouco sobre isso, a gente não sabe quase nada. Essas mulheres do período ainda estão encobertas”, diz ela, que aponta os jornais da época como uma das principais fontes de informação sobre o tema.
Além da Federação liderada por Bertha, que acabou ficando mais conhecida, a pesquisadora destaca, por exemplo, o papel de outras associações na aprovação do voto feminino, como a Aliança Nacional de Mulheres (ANM), fundada pela gaúcha Nathercia Silveira, e a Associação Batalhão Feminino João Pessoa (ABFJP), da mineira Elvira Komel.
A questão da invisibilidade de parte das pioneiras pelo sufrágio é um dos pontos destacados pela jornalista e doutoranda da UnB (Universidade de Brasília) Patrícia Cibele da Silva Tenório, que em sua dissertação de mestrado buscou resgatar a trajetória de Almerinda Farias Gama, depois de se deparar com a foto dela votando.
“Quem é a mulher atrás da foto? Essa é a pergunta que eu me fiz o tempo todo e aí fui nessa pesquisa que foi uma jornada de encontrar o que eram vestígios”, conta.
Como presidente do Sindicato dos Datilógrafos e Taquígrafos do Distrito Federal, Almerinda foi a única mulher, entre 272 representantes, a votar como delegada na eleição que escolheu os deputados classistas para a Constituinte.
“É importante pensar que a presença da Almerinda naquele espaço é fruto de uma estratégia feminista para colocar uma mulher naquela eleição”, diz.
Em linhas gerais, tratava-se de uma experiência introduzida por Vargas que dava espaço no Congresso a representantes de sindicatos autorizados pelo governo.
Em sua pesquisa, Patrícia Cibele identifica que a formalização do sindicato e a escolha de Almerinda como presidente se deu a menos de um mês da eleição, próximo ao prazo limite. “Elas criam um sindicato que é quase um sindicato de fachada.”
“Elas iam mapeando qualquer possibilidade de participação política e as feministas iam tentando entrar.”
Tentativas anteriores Antes de Vargas tomar o poder, diferentes projetos de lei já tinham sido apresentados na Câmara e no Senado por congressistas que apoiavam o sufrágio feminino, mas enfrentavam forte oposição.
Em 1917, por exemplo, o projeto do deputado Maurício de Lacerda que incluía o voto feminino foi arquivado pela Comissão de Constituição e Justiça por considerá-lo inconstitucional.
As propostas seguintes não chegaram a ser declaradas inconstitucionais, mas tampouco foram aprovadas.
Outra protagonista da luta pelo sufrágio foi a professora Leolinda Daltro, que em 1910 fundou o Partido Republicano Feminino, como forma de congregar apoio à causa. É dela o primeiro registro formal ao Congresso solicitando que fosse aprovado o voto feminino em 1916.
Já desde a primeira Assembleia Constituinte republicana, após a proclamação da República, as mulheres acreditavam que a mudança seria incorporada. Emendas prevendo tal direito de modo explícito, contudo, foram rejeitadas.
A Constituição de 1891 previa: “são eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei.” Estavam excluídos explicitamente os mendigos, os analfabetos, os praças de pré (militares de baixa patente) e religiosos de ordens.
Caso tivesse aprovado a mudança, o Brasil teria sido pioneiro em estender o direito de voto às mulheres. Em 1893, a Nova Zelândia foi o primeiro país a aprovar o voto feminino.
Ao longo da Primeira República, diferentes mulheres que tentaram se alistar como eleitoras tiveram seus pedidos negados com base na redação, apenas no masculino, do texto constitucional.
Em 1927, a legislação eleitoral do estado do Rio Grande do Norte foi a primeira a permitir o alistamento de mulheres.
“No Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei”, estabelecia o texto. Os poucos votos femininos, contudo, foram considerados inválidos pelo Senado.
É também do Rio Grande do Norte a primeira mulher eleita prefeita no Brasil. Em 1928, Alzira Soriano venceu a eleição à Prefeitura de Lajes, município do interior do estado, pelo Partido Republicano.
Já Antonieta de Barros foi, em 1935, a primeira mulher negra a ocupar um mandato eletivo, ao ser eleita deputada estadual de Santa Catarina.
Ainda hoje, porém, a presença de homens e mulheres em espaços de poder segue desigual. Hoje o Rio Grande do Norte é o único estado que possui uma mulher, Fátima Bezerra (PT), à frente do governo estadual. Em 1994, Roseana Sarney, no Maranhão, foi a primeira mulher eleita governadora.
Dilma Rousseff, em 2010, foi eleita a primeira e única presidente mulher do país. Entre os pré-candidatos à Presidência cotados até o momento, há apenas uma mulher na disputa: a senadora Simone Tebet (MDB).