Fersen Lambranho, da GP Investments, é muito conhecido no mercado financeiro por ser um dos principais gestores brasileiros de fundos de private equity e que investiu bilhões em compra e venda de empresas brasileiras nas últimas décadas. Mas ultimamente ele tem falado muito sobre indígenas. Não, ele não se tornou um ativista, nem vai virar. É que Fersen está agora imerso no mundo da tecnologia e está se questionando sobre a privacidade, algo que os índios não possuem, segundo ele, mas que os tornam aptos a viver em um coletivo. “Eu começo a pensar até que ponto a privacidade é de fato um bem essencial”, se questiona Fersen. Quanto mais dados, mais a tecnologia avança, como a China tem provado, enquanto o Ocidente se apega à discussão sobre a privacidade.
Ao abrir mão da privacidade do seu próprio corpo, Fersen agora sabe até mesmo que em alguns dias é melhor não fazer exercícios. Ele usa um anel cor de chumbo que monitora todo o funcionamento do seu organismo e sua rotina. O anel promete até mandar um alerta no seu celular: “você precisa ir ao hospital agora porque daqui cinco horas terá um infarto”. Mas isso só é possível porque milhares de outras pessoas usam o mesmo anel e compartilham os dados, permitindo que a tecnologia faça sua mágica.
Quando terminou um longo bate-papo com esta colunista, Fersen disse estar preocupado. Por quê? “Porque está parecendo tudo muito esotérico”, me respondeu ele. Falamos de tudo um pouco, mas muito pouco, por exemplo, do passado da GP, que investiu com grande sucesso em empresas como a ALL, Magnesita, Submarino, Cemar, BR Properties, Estácio e tantas outras. Não perguntei sobre os investimentos desastrosos no Hopi Hari ou Imbra. Pouco falamos sobre seu tempo nas Lojas Americanas. Quase não tocamos no assunto da G2D, o fundo de venture capital que tem ações listadas em bolsa e investe em empresas de tecnologia mundo afora e tem ganhado dinheiro com apostas certeiras em unicórnios.
Mas Fersen tem razão em achar que o papo foi esotérico. A tecnologia avançada é assim. A começar pelo blockchain, que é hoje a principal aposta de Fersen. Há seis anos, eu assisti um TED Talks de um canadense importante da área, que agora, confesso, não me recordo o nome, mas ele falava que o blockchain iria salvar as democracias. Fiquei fascinada por aquilo, mas a bem da verdade é que nunca consegui alcançar a complexidade deste pensamento. Talvez por ficar muito ligada somente às notícias sobre as criptomoedas, que usam a tecnologia do blockchain, mas que mais parecem um grande esquema de pirâmide financeira do que algo a ser levado a sério. Nunca entendi como o blockchain poderia salvar a democracia até esta última quinta-feira à tarde quando tive esse papo com Fersen. Seis anos depois, tudo ficou muito claro.
E além de falar sobre a democracria, trazer para o debate a vida dos índios, os jardineiros da floresta, como diz ele, Fersen falou também em como a tecnologia pode salvar as florestas, o ser humano e ainda discorreu sobre o atraso tecnológico brasileiro, sobre diversidade, meritocracia e igualdade de gênero. Um papo imperdível. Vem ler.
Vamos começar do começo? Pelas Lojas Americanas? Como é que hoje, vendo em perspectiva e sob a ótica da Amazon, você analisa as Lojas Americanas e o Submarino? A Lojas Americanas foi super inovadora. Sobreviveu enquanto outras quebraram. E teve a ousadia de trazer para o varejo técnicas de gestão da indústria. Quando em 1999, a internet acontece, a Lojas Americanas teve a capacidade de criar americanas.com. Em paralelo, a GP criando o Submarino. O shopping também já existia, o shopping também deu uma pivotada pra ir pra internet também. Ali no núcleo em torno da GP e dos controladores das Lojas Americanas, você teve a formação do e-commerce brasileiro.
Mas temos a sensação que não evoluiu, ou melhor, demorou a evoluir. A diferença para a Amazon é o marketplace. Como acontece em boa parte das indústrias, os brasileiros demoraram muito a entender. E aí você tem um player na América Latina que insistiu no projeto de marketplace por anos e acabou ganhando uma dimensão grande e meio sozinho, correndo na pista sozinho, que é o Mercado Livre. Mas era uma startup e em 22 anos, eu chuto que durante quinze anos foi muito difícil para eles. E eles tiveram resiliência, capacidade de manter nessa linha. O que é muito mais complicado quando você está falando de uma companhia da dimensão das Lojas Americanas que tem receita, que tem ebtida, que tem o tamanho.
Ninguém estava focado em tecnologia. Ninguém estava focado em tecnologia, o que é a história do Brasil. Nós, na GP, depois da bolha da internet, deixamos de investir com venture capital por muitos anos, porque a gente concluiu que faltava no Brasil coisas básicas, como tecnologia. E a tecnologia não viajava. Na web 1.0 que era a web daquele tempo, o que que você fazia? Colocava na internet o mundo físico. Mas não era uma coisa simples. Era difícil, tinha que saber programar. A web 2.0 é diferente. Surgem basicamente os americanos como Google e Facebook, e Amazon vai nessa nessa esteira, que vão em busca de criar um algoritmo em que pessoas comuns conseguem interagir com facilidade. Resolveu o primeiro problema “você vai usar a internet sem entender de internet, sem entender de computação”. O segundo aspecto é que eles mostram onde o cliente está. Mas isso tem um custo. Então a liberdade deixa de existir porque o dono do algoritmo muda a hora que quiser. Hoje eu tô aqui vendendo fluxo a esse preço, amanhã é esse preço e acabou, não tem conversa. Uma economia que tem um Estado que promoveu o desenvolvimento disso e que tem uma vantagem competitiva sobre os americanos é a China.
E que vantagem competitiva tem os asiáticos em relação ao Ocidente? O Ocidente acredita na privacidade. O oriente não acredita em privacidade. Uma tribo de índio do do Alto Xingu também não acredita. Eu começo a pensar até que ponto a privacidade é de fato um bem essencial. Porque quando você abre mão da privacidade você permite o trabalho em prol do coletivo. É a vacina. Você se vacina, todo mundo vai ser vacinado, né? Então o oriente tem uma vantagem competitiva imensa pra se utilizar da inteligência artificial, da nuvem e de tudo isso em relação ao ocidente, que fica aqui brigando por um monte de coisas que não necessariamente são todas importantes. Volto ao ponto da tribo de índio que é muito mais antiga e muito mais resistente que a nossa sociedade: não tem privacidade. Mas vamos entrar na web 3.0. A web três ponto zero é uma volta à democracia na internet. É baseada principalmente em cima do Blockchain. Que é baseado em computação distribuída e redundância na busca da transparência, da governança, a um custo mais baixo. Eu não tô dizendo pra você o que vai acontecer, com certeza. Mas pela primeira vez na história vai existir o instrumento. E aí provavelmente vão nascer bolsões de desenvolvimento distribuídos e anárquicos no sudeste asiático, na Índia e eventualmente no Brasil, que vão confrontar esse gigantes do 2.0. E muitos dos intermediários que estão estabelecidos vão provavelmente ter que rebolar pra se manter na posição que estão.
Mas vemos resistência em países como Rússia e China com as criptomoedas, por exemplo. Eu acho que a a resistência à criptomoeda vai vir em todos os países. Elas questionam uma coisa muito simples: por que que o governo é responsável pela emissão de moeda? Mas o blockchain, só para botar em perspectiva, é muito maior que criptomoeda. A criptomoeda é só o primeiro exemplo que apareceu em 2009 e gerou esse furor todo. Mas eu acho, por exemplo, o NFT poderosíssimo. Nada que está sobre a face da Terra pode deixar de ter o seu NFT. Se eu tiver um NFT da minha ficha de saúde, em qualquer lugar do mundo que eu estiver, qualquer médico vai poder pegar, entender o que aconteceu comigo, todos os meus exames. O NFT, por definição, é o seguinte, cada objeto, cada coisa, cada serviço ter o seu NFT. É único, só existe aquele.
Como se fosse um cartório? Como se fosse um cartório. Na nuvem.
Mas isso precisa de empresas que façam isso, como temos as big techs hoje, não? Também é possível fazer organização independente, sem dono, como é o Linux. Um monte de gente se junta, fica coproprietário da organização que tem o protocolo médico das pessoas. E quem é o dono? É quem participa. Tem que mudar o algoritmo, tem que tomar a decisão? Votação. E isso já está acontecendo. Dezessete mil e quatrocentas pessoas se juntaram para comprar a Constituição Americana. Isso é fantástico. É histórico. Dezessete mil e quatrocentas pessoas entraram na Sotheby’s, bidaram 40 milhões de dólares para comprar a Constituição Americana original. Mas por que as pessoas não berram isso aos quatro ventos?
Por quê? Porque o establishment todo, da qual inclusive eu faço parte, está ‘at risk’ e o teu também. Todas as pessoas da face da terra. O homem do cartório está a risco. O porteiro do prédio está a risco, porque eu posso ter uma internet das coisas que permite o controle do prédio inteiro e você pode botar o prédio num NFT, consigo botar isso num blockchain e controlar da China.
Na GP, vocês investiram em muitas empresas tradicionais. Quando deu o estalo para tudo isso que estamos conversando agora? Quando eu mudei para Inglaterra, a gente montou o escritório em Nova York em 2014, 2015, e começamos a ser impactados pelo que estava acontecendo lá. Quando o nosso método de gestão, que a gente aplicou a vida inteira, que era baseado em disciplina, dados e fatos e análise, foi levado para o mundo digital, aonde o processamento é barato, é vasto, a informação é disponível o tempo todo… o PDCA foi para um outro nível. Então não fazia sentido a gente pensar em fazer novos investimentos que não tivesse na equação a união dessas duas coisas. Mas pra fazer isso, a gente achava que tinha que começar a fazer alguns investimentos. Foi aí que surgiu a G2D, é um papel listado em bolsa e tem doze mil acionistas que esperam da gente faça uma curadoria de mundo mais Brasil.
Por que escolheram Mercado Bitcoin? A gente fez um investimento muito bom na Coinbase, quando ela valia oitocentos milhões de dólares, há alguns anos.
A que fez o IPO? Nossa, então vocês estouraram de ganhar dinheiro? (No IPO, a Coinbase chegou a 100 bilhões de dólares). Foi bom investimento. Em vez de comprar cripto ou fazer coisas assim, a gente entendeu que tinha um bom jogo para fazer com a exchange (corretora de criptomoedas) e essa talvez tenha sido a razão de termos sido um dos investidores do Mercado Bitcoin quando ninguém estava investindo no Mercado Bitcoin. O objetivo é justamente esse. Quando você está em vários lugares, dá uma dimensão maior e você poder de fato fazer o julgamento correto das coisas.
Pouco antes da próxima pergunta, Fersen comentou que meritocracia é um conceito distorcido. Que meritocracia para ele é ter ao seu lado alguém que trabalha tanto quanto você.
Como você vê a a meritocracia hoje sob o ponto de vista das pessoas que não tem oportunidades? Dos negros, dos pobres, dos que não têm acesso a educação. Eu acho que nós, como sociedade, temos a obrigação de achar meios para dar oportunidades iguais pra todo mundo. Eu não compreendo no dia de hoje por que que nossas pessoas que estão na favela não têm as melhores aulas do mundo dadas pelos melhores professores do mundo? Porque basta ter isso aqui (aponta para o celular). Por que que eu sou tão esperançoso da web 3.0? Porque eu acho que ela vai permitir acesso com facilidade a muita coisa, especialmente a educação. Se tiver um celular na mão de cada brasileiro e estiver dando aula usando esse negócio, de repente, por ano, eu descubro trinta gênios da favela. Em vez de ter um Neymar que saiu pra jogar futebol, eu terei trinta químicos, trinta físicos. Eu consigo descobrir os gênios, consigo descobrir os que têm aptidão por uma coisa, o que tem aptidão para outra coisa, o que faz melhor redação. E veja, se o governo der um celular para cada brasileiro, vai gastar dois bilhões de reais. É nada. Quanto que o governo vai gastar nessa eleição? Quantos bilhões?
Quatro ponto nove. Com dois bi, ele transforma cada brasileiro numa pessoa que participa da sociedade moderna, com acesso a tudo.
Como você busca essa igualdade de condições nas empresas que você investiu e administrou. Como tratou essa questão da diversidade, por exemplo. Ao longo desses quase trinta anos de trabalho, muitos conceitos mudaram e realidades mudaram. Você começa tendo a sensibilidade, depois começa a enxergar. E ao começar a enxergar você começa a agir. Mas eu acho que a geração dos millenials está educando a geração anterior dela. E eu acho que eles são de fato o grande motor da mudança. Tinha uma empresa nossa em que eu via mulheres de 28 anos casando e indo embora e eu sempre achei que era um chamamento da maternidade. Hoje percebo que não é isso. Elas vão embora porque o ambiente é tão tóxico, é tão chato, que elas falam assim “cansei, sabe? Não quero mais.” Hoje a minha batalha é essa: tornar o ambiente diferente.
Com a pandemia você acha que tem uma mudança de ambiente nesse sentido? Por que isso facilita para as mães. Eu acho que quanto mais jovem você é, mais prejudicado você foi. Eu tenho dúvidas que as pessoas crescem à distância. Volto aos indígenas. Eles não têm escrita. E todo mundo sabe pescar, todo mundo sabe caçar, todo mundo sabe os rituais, sabe a arte, sabe a história. Você está junto com alguém, encontra, esbarra e de repente surge uma eureca.
E não falamos ainda de meio ambiente. Você desistiria de um negócio por conta desta questão? Não tenho dúvida. Hoje um negócio que tem uma questão ambiental, dificilmente vai fazer parte da nossa escolha. É inadmissível não ter um esforço paralelo com igual pra proteção do meio ambiente como tem a ciência do espaço. Eu acho que a web 3.0 vai ter um papel extremamente relevante pra garantir muita coisa. O NFT pode ser a certificação. O NFT, Blockchain, satélite 24 horas, essas coisas podem nos levar a uma capacidade de simplificar, tornar mais transparente e garantir preservação. No limite, isso pode ser controlado por toda a população do planeta. Ou por subgrupos da população. Se os governos pudessem ajudar, faria diferença. Quando um mandatário diz “vamos nos vacinar” é diferente de quando o mandatário diz “não vamos nos vacinar”. Então se os governos agirem em prol disso não tenho dúvida que é muito mais poderoso.
Falamos aqui como a questão da tecnologia no Brasil é atrasada. Vamos enfrentar uma eleição e ninguém discute ciência e tecnologia. Não lembro de nenhum governo na minha vida no Brasil que tenha tido um plano holístico pra gerir o país. Um planejamento de futuro que transpassa mandatos. Se você me perguntar assim, qual é o órgão do governo que planeja o Brasil? Eu desconheço. Você conhece? O BNDES tinha um papel assim, mas era totalmente desvio de função. Eu vejo muita debate de economia, juros pra baixo, juros pra cima, inflação, não sai disso. Mas é essa eleição, é a passada, é a anterior, a outra, outra, outra.
Você mencionou muitas vezes os indígenas nesta conversa. É um assunto novo pra você? Tem um autor que escreve sobre florestas, sobre as plantas, que dá uma dimensão que a gente nunca parou pra pensar na composição de uma floresta, esquecendo que é uma população de seres vivos, que tem inteligência, que tem modus operandi, tem uma coletividade que se protege e os índios são jardineiros da floresta. Quando eu cheguei na Inglaterra eu vi muita gente preocupada com a Amazônia. E aquilo foi tão estranho pra mim. Porque num era uma coisa que passava pela minha cabeça. Realmente era um outro planeta, um outro mundo e eu acho que é assim como os brasileiros veem a Amazônia em geral. O mato está lá, entendeu? E pensando sobre isso, estudando e vendo coisas e tudo mais, eu cada vez mais tô mais sensível. Nas comunidades indígenas, temos conceitos que se perderam na nossa civilização e que eu acho que de um jeito ou de outro vão acabar voltando. É como eu descrevi aqui, na medida em que a gente está usando os dados pra viver melhor, satisfazer mais, o que quer que seja, a gente está perdendo a nossa privacidade, os índios não têm privacidade, os índios não escrevem, mas sabem de tudo. Hoje a nossa educação pode passar por isso, pode ser que em determinado momento a gente não escreva mais e a gente só tenha o visual e que a gente consiga sair, entrar em universos paralelos no metaverso, e viver vivências em detrimento de ler. Quer dizer, a criança em vez de ler, ela vai passear em Roma antiga. Ela vai conversar com uma pessoa, com o romano da época. Ela vai entrar no fórum romano.
Essa sua sensibilidade aí que você mostrou pela questão dos índios, da Amazônia, a gente pode esperar em algum momento um Fersen ativista? Não.
Por quê? Porque a contribuição que eu posso dar é no campo da mentoria. É onde eu trafego. Então, o que eu posso dar é o seguinte: eu tenho um investimento numa companhia que visa ajudar isso acontecer. Então, mentorar essa companhia, ajudar os caras a se desenvolverem é o ativismo que eu sou capaz de fazer.